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22.3.10

MEMÓRIA

TEMPESTADES

Tenho o privilégio de escrever neste nosso jornal há cerca de quinze anos. Durante todo este tempo, abordei os mais variados assuntos. Ora aplaudi, ora, as mais das vezes, censurei ou denunciei. Fi-lo tendo sempre a consciência entre as mãos, procurando ser verdadeiro. Mas cuidado. A verdade, sobretudo a verdade dos actos públicos, é uma enguia escorregadia, difícil de ter entre as mãos. A verdade nunca é absoluta. Cada um de nós apenas detém uma parcela, por vezes ínfima, da verdade integral. E, não raras vezes, aquilo que admitimos ser a verdade não é senão a fantasia criada para os nossos olhares tomarem como verdadeira. Não é, por isso, fácil a tarefa de comentar a realidade quando dela se tem esta percepção. As possibilidades de sermos injustos, de faltar à verdade, de tomarmos a nuvem por Juno, são imensas. E, ao contrário do que muita gente pensa, sobretudo aqueles que se julgam atingidos pelo que o cronista diz, este não é um mal intencionado. E quando, por alguma razão, verifica que não foi verdadeiro, ou justo, ou correcto aquilo que disse, sofre verdadeiramente com isso. Quase diria que, atentos estes riscos, muitas vezes tenho pensado se melhor não fora estar calado.

Mas a tarefa tem outros apelos. Aos riscos contrapõem-se, como sempre, algumas oportunidades. Em primeiro lugar, o risco é esbatido pelo facto de que o cronista não dá notícias. E tem consciência disso, O cronista apenas expressa uma opinião, A sua. A que os leitores podem ou não aderir. A opinião do cronista passa sempre pelo crivo da opinião própria de quem o lê. Isto é, o risco de faltar à verdade é algum. Mas os efeitos disso tendem a ser muito pequenos. Por outro lado, o opinador tem a oportunidade de contribuir para o conhecimento mais integral da verdade, ao apresentar a sua visão da realidade. Esta não é global, não é inteira, não é absoluta, Mas, tanto por aparecer em voz alta como por poder representar um ângulo de visão ainda não considerado pelos outros, pode dar - e geralmente dá - um contributo enorme para a formação da opinião global e mais esclarecida sobre os factos que nos tocam. Um contributo que estará na razão directa da credibilidade que o cronista mereça aos seus leitores ou ouvintes. Credibilidade que não é inata e que se não pode comprar na loja da esquina. A crfedibilidade de cada emissor de opinião sempre resultará da adesão dos receptores às suas teses, aos seus princípios, às suas opiniões.

Claro que um cronista pode influenciar, por vezes muito, a marcha dos acontecimentos. Eu diria, ainda bem. É nesse momento que a sua função atinge o zénite da utilidade. Em termos muito simples, a realidade social, sobretudo política, divide-se entre os que produzem decisões - os detentores do Poder - e aqueles que por elas são influenciados - os cidadãos. No meio, surge o cronista, comentando as decisões e julgando-as, nas sua génese e nos seus efeitos. Um julgamento imperfeito, como vimos. Mas, ainda assim, um julgamento. Naturalmente, enformado pelos princípios éticos, morais, técnicos, mesmo políticos, do cronista. Se a realidade é, ou pode ser, alterada por força da opinião emitida, o detentor do Poder não gosta. Nunca percebi bem este fenómeno. É como se Poder fosse Saber, numa inversão injustificada do seu contrário. Saber é Poder. Mas Poder não é necessariaamente Saber. Além de que me parece que o detentor do Poder deveria estar sempre sumamente grato aos cronistas. Na medida em que ele tenderá a reflectir, quase sempre, uma boa parte da opinião generalizada daqueles que não têm voz pública. A opinião dos cronistas, no seu conjunto, é quase uma sondagem permanente.

Pois bem. Há quinze anos a escrever neste nosso jornal. Creio que sem falhar um número. E, durante todo este tempo, não me recordo de o editor do Jornal ter sequer trocado uma vírgula daquilo que escrevi. E muitas vezes não terá sido fácil. Sei bem que algumas das minhas intervenções não ajudavam nada os interesses económicos do jornal. Por isso é que, tendo por privilégio esta oportunidade que me é concedida neste Jornal - porventura o mais independente do País e, seguramente, um dos mais independentes - tento honrar tal privilégio. Com todos os riscos, com todas as lacunas, com todas as limitações que a função comporta. Por isso, também, compreendo o que se passou com Marcelo Rebelo de Sousa. E não me escuso a exprimir a minha opinião, tentando não me deixar navegar na bruma dos argumentos que não chegam a sê-lo. Ou no barulho feito pelas oposições, tão sedentas de poder que nem sequer querem esperar pelo fim da legislatura para verem o que pensam e querem os Portugueses.

Em primeiro lugar, afirmem-se claramente duas coisas. Em primeiro lugar, os comentadores políticos - como qualquer outro cidadão - têm direito a exprimir a sua opinião sem reservas. E não podem ser perseguidos por isso. O comentador político diz o que pensa e deixa aos seus ouvintes ou leitores, bem como às entidades visadas pelos seus comentários, o direito de estarem de acordo ou não.

Em segundo lugar, as entidades visadas nos comentários têm todo o direito de se defenderem. A "lei da rolha" não se aplica a ninguém. Nem a quem exprime as suas opiniões nem a quem por elas é visado. O Governo - ou qualquer outra entidade - não tem a obrigação de ficar calado quando alguém censura os seus actos.

Pois bem. O que se passou foi que Marcelo Rebelo de Sousa exprimiu as suas opiniões, com inteira liberdade. E, na resposta, o Governo entendeu que deveria contra-atacar o cronista. Só que, enquanto Marcelo o fez com inteira serenidade e de um modo concreto (ademais num tema no qual, na minha opinião, tinha inteira razão), o porta-voz do Governo foi incorrecto, violento e, em lugar de se defender de modo concreto, fê-lo em termos muito genéricos, a configurar uma atitude de censura absolutamente inadmissível. Além disso, ao intervir publicamente como interveio, o Governo não poderia alegar a inocência de pretender que a sua intervenção não tivesse quaisquer efeitos sobre o visado. Isto é, Marcelo - como era seu direito - disse o que pensava, no modo e no tempo correctos. O Governo ripostou - como era seu direito - no modo e no tempo incorrectos. Por isso, e só por isso, perdeu o Governo toda a razão. Como Marcelo viria a perdê-la quando decidiu não suportar a pressão a que foi sujeito. Ao agir como agiu, e para o parafrasear, Marcelo foi "pior que o pior de Santana Lopes". Marcelo não lutou pela liberdade. Marcelo assumiu apenas uma atitude político-partidária. Com a agravante de silenciar o que verdadeiramente estava por detrás da sua atitude.

De tudo isto, a tempestade. Uma tempestade que aparecerá em mais sítios, mais tarde ou mais cedo. O Poder não suporta que falem mal dele. Em nenhum tempo e em nenhum lugar. Seja qual seja a sua cor partidária. Se precisássemos de uma amostra, o actual Matosinhos socialista serviria de exemplo às mil maravilhas. Bastaria olhar ao modo como um órgão de comunicação, dos mais importantes do município, é segregado, marginalizado, até no acesso à informação devida pela autarquia. Tudo só porque é, visivelmente, não afecto a quem detem o Poder. Mas, um dia, a casa virá abaixo. Em Matosinhos como noutros lugares. Inexoravelmente. Para isso tentamos quase todos viver em democracia.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 12/10/2004

2 comentários:

António Barreto Archer disse...

Bravo! Foi com artigos como este, publicados no tempo oportuno e reveladores de uma absoluta independência de análise, que o Magalhães Pinto forjou a sua indiscutível credibilidade como comentador! Muitos há que não podem dizer o mesmo, porque a credibilidade de um opinion maker não depende apenas da agudeza de inteligência e da elegância do estilo, mas também da sua honestidade intelectual. É o tal logos+pathos+ethos... Lembra-se? Não há dúvida que, (in)constitucionalidades à parte, uma "lei da rolha" é eticamente inaceitável em qualquer forum democrático.
António Archer

Anónimo disse...

Tempestade avizibnha-se em matosinhos.

A judiciária já está em campo a averiguar a veracidade do caso do plano de urbanização de cabanelas - Lavra.

Aquele que vai ser costruido pela empresa FDO e que vai derrubar casas clandestinas e abater uma das poucas zonas verdes de matosinhos.