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8.6.11

MEMÓRIA

EXIGÊNCIA

Foi num programa de rádio aberto à opinião pública que este meu pensamento se gerou. Discutiam-se os acontecimentos relacionados com a agressão sistemática de um bébé pelos próprios pais. Maus tratos que conduziram este às portas da morte e, no mínimo, vão deixar nele sequelas dramáticas. Um após outro, os intervenientes externos no programa iam reclamando, veementemente, contra o laxismo das autoridades políticas, contra a desorganização e descoordenação dos sistema de protecção de menores, contra a incompetência dos respectivos funcionários, contra a lentidão dos tribunais, contra o desinteresse do sistema policial, contra a benevolência das penas para crimes de tal hediondez. Era gente de muitas profissões, de muitas idades, de diversos níveis sociais. Atrevendo-me a ofender os especialistas de ciências sociais, quase diria que estávamos perante uma amostra da sociedade portuguesa. De uma amostra, digamos, "especializada". De gente que está, ou julga estar, atenta aos fenómenos da sociedade, aos problemas sociais. Gente que tem, ou julga ter, a noção do que convém ao país. Gente que alberga num recanto da alma a esperança de que esta sociedade possa ser melhor ou o desespero de quem julga que já não há nada a fazer.

A certa altura, um dos ouvintes-intervenientes - uma senhora - fez o que parecia ser a síntese das razões porque tinha acontecido ao bébé de Viseu o que lhe acontecera. "A verdadeira razão porque isto sucedeu é porque efectivamente não temos um sistema de protecção das crianças". Tinha muita razão a senhora, na sua observação. Não temos um sistema de protecção de crianças. Como não temos um sistema de protecção dos idosos. Como não temos um sistema de protecção dos deficientes. Dos cegos. Dos surdos. Dos paraplegicos. Ou das vítimas da violência. Ou das vítimas do trabalho. Ou dos viciados em drogas. Ou dos marginais. Ou dos criminosos. Ou do ambiente. Da terra. Do ar. Dos rios. Do mar. Toneladas de dejectos - humanos e animais - são diariamente lançados no ambiente, muitas vezes com responsabilidade das próprias autoridades políticas, sem que nada (a não ser inquéritos) aconteça. Se olharmos com atenção, não temos protecção para nada. Somos um país desprotegido. Apesar da protecção de tudo estar prevista em milhares de leis, de decretos-lei, de portarias, de despachos, de ordens de serviço, acrescendo os códigos. E este facto faz nascer uma interrogação dolorosa, à qual importa responder. E foi essa interrogação que fez surgir no meu espírito uma resposta perturbadora. É que, de um modo geral, nós, aqueles que protestam, acabamos por ser quem devia assegurar a protecção contra cuja inexistência protestamos. A voz que, sibilinamente, se ergue contra os males do bébé de Viseu pertence à mesma pessoa que tem a seu lado um problema semlhante na sua esfera de acção e nada faz para resolvê-lo. Exigimos aquilo que não estamos disponíveis para dar.

É. A nossa sociedade está amputada de exigência. Só temos metade. Passamos de uma situação em que apenas tínhamos deveres - no tempo da ditadura - para uma situação em que julgamos ter apenas direitos. Exigiam-nos o cumprimento dos deveres. Aprendemos bem. Hoje, só exigimos direitos. As greves campeiam. "Na defesa dos direitos adquiridos". Sem reparar que não há direitos adquiridos senão em função dos deveres aceites. Os direitos são a outra face da moeda que numa delas tem os deveres. Pobres de nós! Nem vemos que se não cumprirmos todos os nossos deveres, não haverá direitos para ninguém. Este é, porventura, dos poucos males da "Revolução dos Cravos", o maior. Convenceu-nos de que só temos direitos. E, depois, berramos porque, aí ao nosso lado, alguém não cumpriu os seus deveres. Berramos com a mesma força com que, no dia seguinte, noutra emissão dedicada à discussão de direitos, defendemos convictamente os nossos.

Falta, à sociedade portuguesa, uma cultura de exigência. De nós para conosco próprios, como ponto de partida da exigência feita aos outros. A escolha é relativamente fácil. Ou queremos ser um povo de qualidade ou queremos ser a ralé dos povos. Resolvamos esse problema e teremos todos os nossos problemas resolvidos. Parece simples. E é. A única barreira é o nosso egoísmo. Egoísmo que parece de betão. A pedir uma bomba atómica.

Não estou, naturalmente, em condições de avaliar quais seriam os efeitos da utilização da bomba atómica (em sentido figurado, claro) num caso tal. Nem mesmo sei qual será essa bomba atómica. Seria, por exemplo, ficarmos, de um momento para o outro, sem ter segurança social. Curiosamente, uma bomba atómica cuja utilização se prefigura no horizonte se não arrepiarmos caminho. Por enquanto, estamos só a utilizar bombas de rabiar, cortando agora um subsídio, reduzindo amanhã uma comparticipação, aumentando os deveres conexos de um benefício depois de amanhã. A seu tempo, estas pequenas bombas produzirão um efeito que, somado, terá as mesmas consequências da bomba atómica. Urge estancar o bombardeamento. E não será com a defesa estrénue dos nossos direitos sem o concomitante cumprimentos dos nossos deveres que o lograremos.

O pensamento que aqui deixo tem, obviamente, um carácter geral. Mas tem particular aplicação no mundo do trabalho. É que tudo aquilo contra o qual protestamos depende do trabalho de alguém. Muitos desses protestos destinam-se a "defender os postos de trabalho". Uma expressão que traduz bem o estado de espírito de quem protesta. Podiam estar a defender o "direito ao trabalho". Não. É ao "posto de trabalho". Mais uma vez, uma visão cega. Não há posto de trabalho nenhum onde não houver trabalho para fazer. E há sempre trabalho para fazer onde ele é feito com responsabilidade, com exigência, com produtividade, com economicidade. Isto é, é mais fácil defender o trabalho do que o posto de trabalho. É que há trabalho para fazer onde o trabalho seja feito com exigência.

Talvez seja uma longa jornada a aquisição de um grau de exigência compatível com a qualidade desejável para o país. Mas todas as longas jornadas começam com um pequeno passo. Queremos ou não fazer a jornada? Na resposta a esta questão residirá a qualidade do nosso futuro. Porque, se quisermos fazer a jornada, então daremos já, hoje, o primeiro passo. Um primeiro passo que não resolverá absolutamente nada. Mas que nos conduzirá na direcção acertada. Não será nada fácil, a jornada. A cada passo defrontar-nos-emos com o egoísmo individual. E sentiremos a tentação de ser como os outros. Uma tentação a que temos que saber resistir. Temos que banir do nosso pensamento a ideia de que somos apenas "parvos" num mundo de "espertos". Porque, com ele, não resolveremos nada também. E, pelo contrário, estaremos a caminhar em direcção ao abismo do aniquilamento colectivo. Se encetarmos a jornada, quem sabe, talvez consigamos que, em cada dia, engrosse a legião dos exigentes. Sem esquecer nunca que a exigência só terá efeitos verdadeiramente visíveis se começar por nós próprios. Se eu fizer o meu trabalho conscienciosamente hoje, durante todo o dia, estarei em condições para exigir que o meu vizinho não faça barulho, logo à noite, quando eu quiser descansar. De contrário, não.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 10/1/2005

1 comentário:

Passos Gonçalves disse...

Absolutamente de acordo! Gostei e partilho das suas opiniões.
Passos Gonçalves