Atravessamos o rio dos dias, a vau, expostos à corrente impetuosa dos acontecimentos, de alma apertada e olhar toldado pela espuma das palavras que sabemos vãs. Porque próprio da natureza humana, guardamos uma réstia de esperança. A de que, no lado de lá, esteja o paraíso prometido. De algum modo, somos israelitas a atravessar o deserto de Sinai. À espera de que, de uma rocha qualquer, brote o maná que nos saciará a fome. De dores, temos que contar. Especialmente nestes últimos anos. Sendo que uma das maiores é não sentirmos a presença de um qualquer Moisés. Que, na nossa terra, usamos chamar de Sebastião. Deuses, temos tido com fartura. A debitar decálogos ao ritmo da publicação da Bíblia, vulgo Diário da República. Anunciados pelos profetas, muitas vezes por antecipação, outras tantas com eco. Decálogos logo esquecidos, para justificar uma nova tábua das leis. Que desaforo de navegação! Fartam-se de dizer-nos onde está o Norte. Mas não achamos o Norte. Nem a Estrela Polar nos ajuda. Deve ter congelado no frio da nossa desesperança. Não que tenhamos que caminhar para o Norte. A Terra Prometida fica para Leste. Para o resto dos pontos cardeais só temos o mar e não a terra. Mar que nem sequer é vermelho. É mais azul que outra coisa. Pelo menos, a avaliar pelos ditames dos doutores do templo. Para Leste é que é. Num canto chamado Europa. Só que a Europa, dizem, não é sítio onde se viva por estas alturas do Tempo.
***
Desde o início dos anos setenta que a Europa se perdeu. Destruída na guerra, teve à sua frente vinte anos de reconstrução. Havia trabalho para toda a gente. Para trás, morta na Normandia no norte de Itália ou nas Ardenas, havia ficado uma legião enorme de jovens trabalhadores. Eram tão poucos os europeus, para o trabalho a fazer, que não houve remédio senão retirar a mulher de casa e das suas nobres tarefas para a batalha da produção. Foi a emancipação da Mulher. Justa? Seguramente. Necessária? Ainda mais. Mas não faltou o trabalho. De alguma maneira, e tomando por paradigma o caminhar da Humanidade desde os tempos primeiros, foi como o período que se seguiu à invenção da roda. A produtividade conheceu saltos incríveis. A fartura apareceu. A mais pequena descoberta induzia muitas mais. Éramos felizes. Atenção. Éramos felizes aqui, no Primeiro Mundo. Porque no Segundo se vegetava e no Terceiro se morria de fome. Até que.
...
Excerto da crónica PARA MEDITAR - Magalhães Pinto - VIDA ECONÓMICA - 18/6/2008
Sem comentários:
Enviar um comentário