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4.3.10

CRÓNICA DA SEMANA - II

OS ABUTRES E AS POMBAS

Da Física, só conheço as máquinas simples. Algo que todos os Portugueses conhecem. Não há quem não use uma alavanca para mover vontades. Não há quem se mova sobre roldanas, nesta vida tribulada que levamos. Não há quem não se meta em sarilhos. E eu sou como os demais. E, como os demais, se toca a falar de energia, sou um zero à esquerda. Apesar disso, julgo que entendi um documento que me chegou às mãos, sobre a catástrofe madeirense. Vou ver se sei explicar o essencial da questão por palavras minhas. Então é assim:

- No dia do acidente, caíram sobre a Madeira 176 litros de água por metro quadrado;

- Isto é, foram lançados do alto 176 quilos por metro quadrado;

- As zonas mais altas da Madeira atingem quase 2.000 metros; as mais baixas estão ao nível do mar, isto é, zero;

- Admita-se que os tais 176 quilos por metro quadrado foram lançados sobre o terreno à altitude média de 1.000 metros;

- Então, diz a ciência, através de cálculos que não vou fazer aqui, que a energia potencial caída dos céus sobre a pobre ilha, tendo em conta a força da gravidade e a altura média a que caiu, e ainda que apenas tivesse caído sobre um quilómetro quadrado da ilha, teria ao nível do mar uma capacidade energética (cinética) para fazer um “trabalho” equivalente ao que permitiriam OITO centrais nucleares das muito grandes. Qualquer coisa como oito gigawatts.

Naturalmente, naquele raciocínio, presume-se que a água fluiria livremente, sem encontrar resistências de nenhuma espécie até chegar ao mar. O que não é, obviamente, o caso. Isto é, a energia potencial existente na água caída ao cair, foi-se transformando em energia cinética ao encontrar obstáculos, anulando-se no arrastar das casas, das lamas, dos veículos e das pedras e na destruição do património existente. Não sendo engenheiro, é para mim fácil imaginar qual seria a destruição provocada na cidade do Funchal se muita daquela energia potencial não tivesse encontrado obstáculos, não fosse canalizada, não se escoasse nos mil e um acidentes do seu percurso até à cidade. Aliás, basta recordarmos a caminhada tumultuosa da água na parte canalizada das ribeiras para imaginarmos quanta energia se escoava por ali abaixo.

Também não me é difícil aceitar o argumento por aí usado de que esta energia seria menos tumultuosa e concentrada se a água pudesse (digamos assim) espraiar-se. Pois. Mas para que a água pudesse espraiar-se teria que NÃO HAVER A CIDADE DO FUNCHAL JUNTO AO MAR. É que a cidade do Funchal situa-se exactamente no ponto onde o funil deixa de ser largo para ser estreito. Logo, a responsabilidade maior do sucedido, se quisermos aceitar o argumento dos que atiram o essencial das culpas para a gestão recente da ilha, tem que ser assacada aos portugueses das descobertas e colonização, por terem localizado a hoje linda cidade naquele local. Aliás, há um pormenor que os “abutres” (na linguagem de Alberto João Jardim) parecem desprezar. É que a destruição provocada pelas águas – incluindo a maioria dos mortos - sucedeu precisamente no sítio onde não havia canais e a água escorreu livremente. Uma consequência, aliás, das energias de que falamos acima. E não parece difícil aceitar, desta vez, a voz grossa de Jardim. Porque é difícil aceitar que a motivação seja outra, para muito do que se diz e para muitos do que dizem, senão a política partidária. Um bom exemplo disso, foi a crónica do professor (de História!) e bloquista de esquerda Rui Tavares no Público, na última segunda-feira. Chamando a atenção para um vídeo publicado na Internet, gravação de um programa Biosfera, da RTP2. Um vídeo que não afasta – bem pelo contrário – a possibilidade de catástrofe numa situação como a vivida, mas antes sugere comportamentos que propiciem uma melhor defesa ante ela. E do vídeo parte, o cronista, para o verdadeiro objectivo da crónica – o sobrevoo “abútreo” sobre o que imagina poder ser o cadáver político de Alberto João Jardim.

***

Pois bem. Se há abutres, também há pombas. E neste infausto acontecimento da Madeira sobressaem cinco pombas bem definidas. Em primeiro lugar, o povo madeirense. O modo decidido como se atirou à tarefa de recuperar e reconstruir a sua terra é verdadeiramente notável. Fazendo jus a um comentário que Jardim fez, para um jornalista que lhe perguntava dos efeitos da catástrofe natural sobre a moral dos madeirenses: “Ó minha Senhora, há séculos que os madeirenses lutam contra a natureza e sempre venceram; vão vencer mais uma vez!”. É isso mesmo. Se a energia das águas destruidoras e assassinas pode ter uma boa resposta, ela é a energia dos madeirenses.

Uma segunda pomba é o povo português em globo. A solidariedade para com a Madeira foi rápida, foi genuína, foi generosa. Subitamente, as grandes qualidades dos portugueses mostraram-se por sobre as águas. E, em momentos assim, sente-se renascer o orgulho de ser português. Uma responsabilidade colectiva, esta, a de fazer renascer tal orgulho.

Uma terceira pomba foi o Primeiro-Ministro José Sócrates. O acidente madeirense deu-lhe a oportunidade de fazer mais pela sua imagem do que toda a sua obra ao longo dos últimos cinco anos. O modo imediato, preocupado e generoso como encarou os acontecimentos da Madeira, enterrando quaisquer ressentimentos que pudesse sentir contra o líder político dos madeirenses pareceu também genuíno, solidário, generoso. Pela primeira vez afirmo: bem-haja, senhor Primeiro-Ministro!

Uma quarta pomba é o Presidente da Câmara Municipal do Funchal. Trabalhador incansável ao serviço do seu povo específico. Nem sequer era necessário vermo-lo – como vimos – no meio dos trabalhadores e cidadãos anónimos que, ainda corria a água com algum vigor e já estavam a arrumar a casa. Bastaria, para sabermos o que para ele foram estes dias e o que ele foi nestes dias, olhar a sua cara uma semana depois do desastre. Os sulcos cavados pelo trabalho, pela preocupação e pela dedicação eram tão profundos como os cavados pelas águas no seu solo de estimação.

Por fim, que não por último, é impossível não reter um elemento de grande apreço por Alberto João Jardim. Incansável Jardim! As suas capacidades para ser líder não soçobraram na enxurrada. Bem pelo contrário. Ergueram-se a alturas impensáveis há bem pouco tempo. Tem algumas culpas no cartório por uma ou outra construção que não devia estar aonde está? Seguramente terá. É impossível não ter. Em todo o Portugal as há. Aliás, como o “seu” presidente da Câmara o Funchal. Mas elas tornam-se minúsculas face à atitude, ao comportamento, à liderança, assumidos nesta hora trágica para a sua Madeira. Entende-se melhor agora porque é que é escolhido pelo Povo há mais de trinta anos. E não é por caciquismo, não. Ficou provado sem margem para dúvidas. Tendo ainda uma outra virtude não despicienda. É que é uma pomba capaz de lutar vitoriosamente contra os abutres.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 4/3/2010

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