O CONTRATO
Não consigo furtar-me à sensação. Parece que o tempo andou para trás uns bons oito anos. Bons é uma maneira de dizer, claro. Releio o Contrato Eleitoral do Partido Socialista. Ao lado tenho o Contrato para uma Legislatura, resultante dos Estados Gerais do PS, que conduziu António Guterres ao Poder. Cotejo os dois. São quase iguais. O de agora parece ganhar em condensação. Tem 164 páginas. Quase metade do que tinha o de Guterres. Mas, também, as medidas anunciadas não são tantas. O Contrato para uma Legislatura de Guterres anunciava cerca de seiscentas medidas. O de agora fica-se mais ou menos por um quarto desse número. O que corrige a ideia de condensação inicial. O de agora tem mais páginas por medida anunciada. Mas, do essencial, está lá tudo. Até um novo Rendimento Mínimo. Desta vez só para cerca de 300.000 pensionistas. O que até faz sentido. O Estado está mais miserável agora do que quando Guterres assumiu o Poder. Ele próprio se encarregou de esbanjar a maior parte da riqueza existente. Os que vieram depois fizeram o resto. Das seiscentas medidas anunciadas por Guterres no Contrato para uma Legislatura, nem 10% foram cumpridas em legislatura e meia. Com alguma sorte, teremos meia dúzia para cumprir no agora anunciado.
Isto não quer dizer que não haja virtude nas medidas anunciadas. Claro que há. Todas as promessas políticas são virtuosas. O problema não reside aí. Reside na capacidade e possibilidade de as cumprir, por um lado, e na competência para as fazer cumprir, por outro. Uma coisa me assusta na eventual situação dos socialistas ganharem as eleições. É que Sócrates, o líder de tudo, tem andado muito escondido. São outros que aparecem a falar em nome dele. Por exemplo, António Vitorino. Um homem cuja capacidade intelectual, profissional e política é indiscutível. Mas António Vitorino não é o chefe das tropas. O que significa que, eleições realizadas e eventual existência de um governo socialista, Vitorino não terá autoridade nenhuma. O que significa que as tropas vão ficar entregues a si mesmas. Ou, outro exemplo, em nome de Sócrates aparece Carrilho. Alguém que conhecemos muito bem aqui no Porto. Foi ele que, numa atitude maquiavélica, afastou do "Porto 2001" o grande gestor que é Artur Santos Silva, entregando o empreendimento a gente sem qualidade que conduziu ao que sabemos: o "Porto 2001" ainda não está concluído quatro anos depois da efeméridde e custou - e custará! - rios de dinheiro que nos fazem falta para outras coisas bem mais urgentes.
Há, no Plano socialista, medidas de evidente necessidade e mérito. Outras que são conversa fiada. E outras objectivamente más, não obstante a música celestial que as acompanha. Permito-me salientar algumas.
- Desde logo, o cartão único para o cidadão. Cada um de nós passará a ter uma única identificação para todas as suas relações com o Estado. Contribuinte, Segurança Social, Carta de Condução e, porque não, Eleitor. Uma dupla vantagem. Por um lado, o Contribuinte estrá sujeito a menor burocracia; e, por outro lado, o Estado poderá cruzar informações sobre o cidadão, permitindo-se ter um maior controlo sobre o cumprimento, por parte daquele, de todas as suas obrigações.
- A redução dos número de funcionários públicos também é medida assinalável. É urgente que assim seja. Embora pareça que tal redução não é apenas de permitir a admissão de um funcionário por cada dois que se vão embora. A medida é inexequível ou terá consequências de desorganização terríveis se não for acompanhada de dotação de meios modernos de gestão na função pública. Isto é, a redução de funcionários públicos exige uma profunda remodelação dos processos de trabalho e dos meios tecnológicos ao dispor da função pública. Acresce que os sindicatos acabam de fazer uma afirmação demolidora. Segundo eles, "o projecto é um disparate, só possível em quem não sabe do que está a falar. Porque se excluirmos a saúde, a educação e a segurança e justiça, não sobram 75.000 postos de trabalho". Ou me engano muito ou estamos outra vez na presença de música apenas.
- Limitação dos mandatos autárquicos. Boa. Queremos. Uma medida que parece de simples execução. Basta os políticos quererem. Mas recordo-me de que já se falava disso há quize anos, quando eu andava na vida política activa. Ainda continua por executar. Donde se conclui que os políticos não querem essa medida. E, assim, isto é apenas papel. De igual jeito vai a promessa de criação dos círculos uninominais. Venham eles. O pior vai ser convencer os políticos a quererem-no.
- Reforço de pensão para os pensionistas muito pobres. Óptimo. Mas lá vamos nós para a necessidade de apreciação de quem é pobre. Papéis preenchidos. Muitos deles autêntica aldrabice, como aconteceu no Rendimento Mínimo. Além disso, necessidade de gente para apreciar e aprovar. As cunhas. A lassidão de quem aprecia. E uma dificuldade a opor-se à desejada redução dos funcionários públicos. Não seria melhor, mais simples e mais justo um aumento generalizado só para as pensões mínimas?
- O PS fez mais barulho do que um tractor contra as receitas extraordinárias usadas pelo governo antecessor para equilibrar o Orçamento. Reparem nesta preciosidade: "Atingir, numa legislatura, o limite do défice… sem recorrer a receitas extraordinárias" (sublinhado meu). Quer dizer, daqui por quatro anos talvez já não se recorra ao "execrável" método de equilíbrio.
- Outra. "Defender a exclusão do cálculo do défice… as despesas de investimento…". Se isto não são as nefandas manobras contabilísticas que tanto verberou o PS, macacos me mordam. E enquanto estivermos a pensar em equilibrar as contas públicas com manobras contabilísticas, estamos tramados. Como o PS disse. Mas que já esqueceu.
- Como qualquer bom romance, também há mistério nas promessas socialistas. "Avaliação das escolas básicas e secundárias, com prémios para as melhores e incentivos para as piores". Prémios e incentivos? Não deveria ser incentivos para todas, a fim de todas se tornarem melhores? Ou então, "valorizar a identidade do ensino secundário com diploma próprio". Isto é surrealismo! Então é a qualidade e utilidade do ensino secundário que lhe dá identidade (e aceitação socio-profissional) ou é o papelucho passado no fim do curso?
- Regulamentação das uniões de facto. Uma medida polémica mas, que no caso de José Sócrates ganhar as eleições, se entende.
- Aumento da licença por maternidade para um quinto mês. Sabendo-se que a função pública é a actividade laboral onde a percentagem de presença de mulheres é a maior, isto não vai estragar a medida de redução dos funcionários públicos? E porquê cinco meses? Porque a criança precisa? Porque a mãe precisa? A criança precisa bem até mais tarde. A mãe precisa bem até mais cedo. Pobres das mulheres! As da função pública ainda se safam, apesar de estragarem os objectivos de reduzir 75.000 funcionários anunciados. As outras encontrarão, cada vez mais, dificuldades em arranjar emprego.
- SCUTS de novo à borla. Talvez se consiga equilibrar o OGE. Sobretudo com recurso às receitas extraordinárias e com as modificações contabilísticas. Já agora, estou por tudo. Adoro quando os políticos prometem gastar dinheiro sem dizerem aonde vão buscá-lo.
- Por fim, a medida desta série que maior aplauso me merece: a profissionalização dos bombeiros. Além do mais, é que, cotejando o Contrato para uma Legislatura, de Guterres, e o Contrato Eleitoral do PS, agora ao nosso dispor, e vendo o que foi feito do primeiro, anuncia-se para aí um grande incêndio. É bom ter os bombeiros a tempo integral.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 25/1/2005
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