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21.2.08

OS HERÓIS E O MEDO - 181º. fascículo

(continuação)

Talvez seja isso, Matos, que faz o fascínio deste jogo para ti. Arriscando aqui tudo, parece que o outro risco, o da bolanha, é menor. Há uns a abafar os seus medos no álcool. Tu abafas aqui. Num jogo no qual, percas o que percas, podes continuar a tentar ganhar. Tudo ou nada numa carta. Aí não há grande diferença. Tudo ou nada numa bala. Numa mina. Mas há uma grande distância entre arriscar o pré ou a pele. Só a adrenalina parece ser a mesma.


O Manel tinha dado as quatro cartas a cada um. Em cima da mesa, um pouco mais de cinco contos, proveniente de várias “abafas” falhados nas jogadas anteriores. O equivalente ao vencimento mensal de dois sargentos. Imediatamente à direita do Manel, estava o Álvaro. Depois o Mário. O alferes. E, por fim, o Matos. O Álvaro abriu as suas cartas com uma só mão. Devagar. Fazia parte do ritual. Ver o jogo lentamente. Aumentava a emoção. As mais das vezes, para as deitar abaixo com uma expressão de desilusão estampada no rosto. O quatro de paus era a primeira carta. Depois o rei de paus. Ainda outra carta de paus, o duque. É pá, embaralhem isso bem! Por fim o valete de espadas. Poucas hipóteses de ganho. Praticamente, só a meia dúzia de valores do naipe de espadas, uma vez que os paus pareciam ter sido todos distribuídos. Passou. O Mário já tinha aberto o seu jogo. Nada mau. Três naipes, de rei, valete e dama. E um duque repetido em ouros. Só faltava o naipe de copas. Era um jogo razoável. Apostou duzentos pesos. Lentamente, o Manel passou a carta de baixo para cima do baralho. Sempre se fazia assim, não fosse alguém ter visto a carta que estava por debaixo no gesticular inadvertido dos jogadores. E voltou a seguinte. Seis de copas. Mário tinha perdido. O valor da mesa subiu um pouco mais. Continuou a subir nos seguintes. Todos perderam. Havia momentos assim. Parecia que as cartas se obstinavam em afirmar estarem todos eles, ali, para perder. Era a vez do Matos. Naqueles cerca de seis mil escudos colocados no centro da mesa, mais de quatro tinham sido lá colocados por si. Mas a má sorte não dura sempre. Ainda não tinha visto o seu jogo. Virou as cartas, vendo só a primeira, as restantes escondidas por aquela. O ás de ouros. Boa. Fingiu cuspir nos dedos e começou a afastar o topo daquela para o lado, para ver a segunda. Apercebeu-se primeiro da cor. Outra carta encarnada. Continuou a desfolhar. O ás de copas. Sorriu. Ora aí estava! Até que enfim, a leiteira! Com emoção já, mas aparentemente imperturbável, continuou a desfolhar. Uma carta preta. Um pouco mais. A manilha de paus. Já só podia perder para onze cartas. Todas as de espadas mais o ás de paus. Continuou. Ainda faltava ver a última carta. Preta também. Parou. Ah! Se fosse uma espada! Parou e olhou para os outros, já desagradados com tanta demora e tensão. Sabiam que, desde que o jogo fosse mediano, o Matos abafaria. Um ligeiro deslizar do indicador e do polegar sobre as cartas e a última ficou à vista. O ás de espadas! Matos ficou alguns momentos a olhar, incrédulo, as cartas que tinha na mão. Nunca lhe tinha acontecido nada assim. Só podia perder para uma carta. A que vencia a manilha de paus. Olhou os companheiros em redor, agora já sem disfarçar um sorriso de triunfo. Abafo. Em redor ouviram-se alguns comentários desencorajadores. Era uma loucura estarem a jogar assim, com tanto dinheiro na mesa. Em cada comentário, a secreta esperança de moderar a ousadia do Matos. Num lance de sorte, podia sair vencedor. E o jogo retornaria ao princípio. Mas aquela grande "mesa" teria desaparecido. Abafo, repetiu o Matos. Tens a certeza? Vais lerpar! Tens a certeza. Para parar com os comentários, Matos abriu o jogo, em cima da mesa, à vista de todos. Era impossível perder, pensaram todos, Era preciso ter muito galo! Abafo, repetiu ele. O Manel encolheu os ombros. Assim, também eu abafava, comentou com desdém, enquanto cumpria o ritual. Passou a última carta de baixo para cima do baralho e, num gesto quase de desdém, tirou a carta seguinte e atirou-a para cima da mesa, face voltada para cima. Um silêncio pesado caiu sobre eles. Como num gesto de escárnio, o ás de paus parecia uma cruz sofisticada a assinalar a derrota do Matos. A manilha não chegava.

(continua)
Magalhães Pinto

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