A FIGURA DA DÉCADA
Se admitirmos que o milénio se iniciou em 1 de Janeiro de 2000, como oficialmente se comemorou (e eu não estou de acordo, já que o primeiro ano do milénio foi, a meu ver, 2001), estamos a terminar a primeira década. E não é atrevimento pensar que esta primeira década do milénio foi extremamente negativa para Portugal. Recordemos que ela se iniciou com António Guterres nos primórdios do seu segundo mandato como Primeiro-Ministro e que Portugal ainda não havia perdido totalmente o seu estatuto de “bom aluno” da União Europeia que, justamente, havia ganho com Cavaco Silva. Estavam, todavia, já lançadas à terra as sementes que haveriam de levar Durão Barroso a uma proclamação, escandalosa para muitos, todavia verdadeira, como hoje sabemos. A célebre “o país está de tanga”. Guterres fugiu. Barroso fugiu. E ficou-nos esta pérola que hoje temos a conduzir o país, que faz o nosso orgulho face à estranja e que todas as semanas nos coloca como primeiros no mundo em qualquer coisa. Se existiu, alguma vez, em Portugal um político conhecedor dos mecanismos de conquista e manutenção do Poder, esse alguém é José Sócrates. Palavras, leva-as o vento. E o Primeiro-Ministro actual sabe isso como ninguém. Por isso nos inunda com elas. Seguro de que o poviléu sempre escolhe em função das palavras e não dos actos. Está-se nas tintas para isto. Basta ver como, escassos dois anos depois de se ter ajoelhado face ao Primeiro-Ministro que tirou Portugal do último lugar da União Europeia – Cavaco Silva – o começou a abjurar e se deixou ir nas falinhas mansas e na estratégia do espectáculo concebida pelos socialistas e por António Guterres. Chegando mesmo a reeleger este, apesar de, das mais de seiscentas medidas anunciadas no seu documento “Contrato para uma Legislatura”, ter realizado apenas pouco mais de 10%.
O feito de Guterres foi agora reeditado por José Sócrates. Independentemente do estado da Oposição, o voto popular das últimas eleições foi uma cuspidela do Povo na sua própria sopa. Aí está o país ingovernável, à frente dos nossos olhos. E – lamentável! – continuamos à espera de que nos falem verdade. Há uma falácia corrente no discurso político, que ninguém parece ter a coragem de romper. É ela a de que precisamos de ser optimistas para ter esperança, para podermos vencer no futuro. Com o devido respeito pelas demais opiniões, não é assim na minha. A única virtude que pode permitir-nos a esperança e, por isso, a vitória no futuro sobre as nossas próprias insuficiências, chama-se verdade. Torna-se urgente que alguém com responsabilidades afirme, sem margem para dúvidas, que o barco está a meter água por todos os lados e corre o risco de se afundar, com todos nós lá dentro. Só assim – e, mesmo assim, talvez – podem todos responder à chamada para pegar nos baldes e começar a escoar a água, uns, e a calafetar as brechas, outros, a ver se conseguimos prosseguir a viagem. Verdade precisa-se, pois. Desde há demasiados anos já.
Apesar de o estado crítico do país dever ser imputado, em primeiro lugar, aos líderes que tivemos nesta década, não é nenhum destes que eu considero a figura da mesma. Não é um político. É um banqueiro. E, para a minha escolha pesa bastante o simbolismo da figura. É que as maleitas de que vínhamos sofrendo – e que haviam justificado a mal-amada proclamação de Durão Barroso antes citada – só se tornaram verdadeiramente visíveis pelo papel (negativo) que os banqueiros desempenharam. Em todo o mundo, e também em Portugal. E aqui, dos três possíveis – João Rendeiro, Oliveira e Costa e Jardim Gonçalves – eu escolho o último. Por ser banqueiro e porque fez aquilo que os políticos costumam fazer. Foi dourando a pílula através de manipulações da verdade. De banho dourado em banho dourado até ao afogamento final. É Jardim Gonçalves, para mim, a figura da década.
Sempre alimentei uma profunda desconfiança quanto aos seus métodos. Creio mesmo ter sido a única voz que, durante uma década, não embarcou nos elogios ao chamado “príncipe das finanças”. Muitos pensaram – e afirmaram – que tal era devido às dores da OPA sobre o BPA. Eu sabia que não era assim. Para mim, a OPA era apenas uma operação financeira idêntica a tantas que se fizeram e fazem no mundo. E, como Jardim foi feliz nessa operação, merecia mesmo algum apreço. Fui inclusivamente tratado impecavelmente por ele, quando a OPA se concretizou. E nenhuma queixa pessoal me restou. Mas, para trás, tinham ficado alguns elementos indicadores de que estávamos em presença de alguém que não merecia a consideração que toda a inteligência do país – cultural, económica, política e financeira - parecia devotar-lhe. Indicadores que, manifestamente, não condiziam com a imagem de banqueiro sério que eu trazia do passado. Recordemos:
- Jardim Gonçalves, assumiu a presidência de um novo banco privado – o BCP – enquanto era presidente do BPA e, muito pior do que isso, continuou a presidir ao BPA mais cerca de um mês acumulando com as funções que já desempenhava no outro que haveria de ser seu concorrente;
- Numa primeira luta com os accionistas do BCP, “enganou” o verdadeiro fundador do Banco, Américo Amorim e ganhou-lhe uma assembleia-geral (na qual provavelmente seria demitido) com base nesse engano;
- Montou uma imensa farsa formal, com o Grupo Melo, para conquistar o BPA, farsa que haveria de ter a conivência de Eduardo Catroga, então Ministro das Finanças, e das demais entidades supervisoras das actividades bancária e seguradora;
- Conduziu depois o Banco (ou deixou que ele fosse conduzido), até dele fazer a maior instituição financeira privada, através de métodos de ocultação e engano de clientes, de que, hoje, ainda só conhecemos os contornos mais elementares; aliás, novamente com permissão das autoridades nacionais, que desprezaram um aviso sério que, em tempo oportuno, foi emitido pelo Stock Exchange, de Nova Iorque.
A década assistiu à queda do génio financeiro. Com consequências, gravíssimas para o Banco. Em termos de imagem e em termos de segurança. Uma imagem que, quando tentava ressarcir-se do efeito “Jardim”, sofreu novo revés com o caso “Vara”. Parece que paira uma maldição sobre o BCP. Uma maldição capaz de influenciar, decisivamente e no mau sentido, o futuro da instituição. O que deve ser imputado ainda a Jardim Gonçalves, pelo rumo que lhe imprimiu. O que, por acréscimo, me conduz a considerar Jorge Jardim Gonçalves como a figura da década, numa década em que surgiram muitos e variados casos de falta de ética na condução dos negócios públicos e privados.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 31/12/2009
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