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16.12.09

MEMÓRIA

FÁBULA COM CÃO

Para verem como o meu cão é esperto, acho que tenho que contar-lhes um episódio passado entre mim e ele. Com resultados que só com um cão esperto como ele podiam ser atingidos. Cheguei mesmo a pensar, no final da história, em mudar-lhe o nome. De "Basófias" para "Engenheiro". Ou algo assim. Mas duas ou três tentativas disseram-me que seria inútil. Ele não responderia à chamada. Não podemos fazer de nenhum "Basófias" um "Engenheiro". O que não quer dizer que o inverso também seja verdade. Perguntará o meu Leitor porque é que eu dei un nome assim ao meu cão. "Basófias". Não é muito comum que os cães se chamem assim. Mas a verdade é que, desde pequenino, o meu cão ladrava por tudo e por nada. Porém, se outro cão o afrontava e crescia para ele, metia o rabo entre as pernas e vinha esconder-se atrás das minhas. Pernas, claro. Foi, aliás, a sua propensão para ladrar por tudo e por nada a estar na origem do tal episódio. E melhor será que lhes conte. Não vão perder a paciência como eu já perdi com os políticos. Os quais também ladram, perdão, falam por tudo e por nada. Eu conto.

Um certo dia, ao ouvir o meu cão a ladrar, nitidamente pedindo-me para ir ao jardim, meteu-se-me uma ideia fixa na cabeça. Porque não havia de ensinar o meu cão a ladrar para pedir comida? O caso é que eu colocava-lhe a comida no pote a horas certas. Umas vezes ele comia. Outras não comia. E quando não comia, a comida azedava. E, azedando, eu tinha que a deitar ao lixo. Com três prejuízos. Desperdiçava o valor dela. O cão emagrecia. E poluía o ambiente. Vai daí, meu pensamento meu feito. E, durante meses a fio, aí estava eu, com paciência infinita, tentando ensinar o cão a pedir comida. O método de treinamento era simples. Punha a comida no pote. Punha o pote em frente ao nariz do meu cão. E imitava o seu ladrar. "Au au au!". E, se ele tentava comer sem ladrar, eu tirava-lhe a comida do alcance. E voltava ao princípio. Sempre me haviam dito que a repetição do que quer que seja é o melhor modo de os cães comerem tudo o que se lhes dá. Bom. Mas o "Basófias", que ladrava por tudo e por nada, não havia meio de ladrar para comer. Andei nisto meses a fio. Todos os dias. E nada. Até que desisti. E passei a colocar o pote no lugar habitual, com a comida hibitual, à hora habitual. Um dia. Dois dias. Três dias. Uma semana. E comecei a ficar assustado. Apesar de ele não passar de um "Basófias", eu até gosto do meu cão. É que ele deixou de comer. Passava pelo pote, olhava-o com olhos concupiscentes, mas tocar na comida é que ele não tocava. Já estava a pensar abatê-lo, quando uma ideia brilhante - até que enfim, uma! - me atravessou a mente. Peguei no pote. Coloquei nele a comida de cão que tinha à mão. Cheguei-lha ao nariz. E imitei, convictamente, o seu ladrar. "Au au au!". E o cão atirou-se à comida como se não comesse há uma semana. O que era verdade. Para encurtar razões, cheguemos ao epílogo. Desde então, o meu cão não come nada sem que eu ladre primeiro. "Au au au!". O que me deixou com a moral da história para não esquecer. Depois de se habituar um cão ao ladrar, todo o cão come seja o que for desde que se ladre a seu jeito.

A moral desta história tem muitas aplicações. Ainda agora, com o Orçamento Geral do Estado (OGE), eu me apercebi disso. Andamos dois anos a apertar o cinto. Os latidos, salvo seja, eram ensurdecedores. Que não era preciso. Que o Governo não sabia era fazer as coisas. Que era possível fazer melhor. E a malta foi comendo. Subitamente, o Governo anuncia que vai fazer melhor. O ruído continua ensurdecedor. Que não senhor. Que o Governo vai aumentar a bancarrota em que nos encontramos. Que o défice não aguenta estas medidas. Que tudo isto é demagogia, é populismo. Sinceramente, não entendo. Durante o período de vacas magras, muita gente gritava que era possível fazer melhor. Agora que o Governo anuncia que vai fazer melhor, as mesmas vozes dizem que o Governo não pode fazer melhor. E, o que é mais ininteligível é que parece que a malta está a comer a comida que lhe dão depois de ouvir suficientes latidos, salvo seja outra vez.

O argumento principal que tenho escutado a quem se opõe a este Governo é que as medidas previstas no OGE vão aumentar, escandalosamente, o défice das contas públicas. Ora o défice das contas públicas foi, precisamente, o argumento do Governo nos últimos dois ou três anos para nos trazer de cinto apertado. Aqui, a minha ignorância assume proporções de estupor. Como é? Então agora que eu estava ganhar a esperançazinha de desapertar um ou dois buraquitos no cinto, a Oposição quer estragar-me a fartura, que nem fartura chega a ser? Desconfio que estão a querer dar comigo em doido. Ou, então, julgam que eu me esqueço facilmente do que se passa na política. Mas eu não tenho culpa. Deus deu-me tão boa memória que nem sequer me esqueci, ainda, dos acontecimentos da lota de Matosinhos que ajudaram a matar Sousa Franco. Apesar de sobre eles se querer estender o doce manto do esquecimento.

Apesar disto, o que mais me espanta é outra coisa. É que este Orçamento, agora apresentado, contempla medidas fortíssimas de combate à evasão fiscal. Felizmente, sem avançar por perigosos caminhos sem retorno, como seria a da inversão generalizada do ónus da prova. Ora, a evasão fiscal é, porventura, o maior cancro das finanças públicas portuguesas. A exigir que todos os políticos, quer sejam Governo ou Oposição, se juntem para matar essa doença terrível. Pois bem. Neste coro de verdadeiro absurdo com que foi recebido o novo Orçamento do Estado, nem uma palavra se ouviu às Oposições sobre este assunto. Um aplauso, por pequenito que fosse. Nada. Não entendo. E, felizmente, não tenho aprendido nada com o meu cão. Não é por muito ouvir ladrar que vou comer o que me pôem à frente.

Marginalmente, também não entendo o barulho ensurdecedor contra o fim dos benefícios fiscais associados às diversas contas de poupança. Em primeiro lugar, porque benefícios mortos não faltam aí para trás, com todos os Governos. Este é apenas mais um. Em segundo lugar, porque o benefício fiscal associado às contas de poupança é aplicável ao rendimento poupado em cada ano por essa via. O que foi poupado para trás já teve o benefício, não se fala mais nisso. O que for poupado a partir de 2005 é que é atingido. Mas, a cada momento, um Governo tem que perceber se o que interessa é a poupança ou o consumo. Se é a poupança, beneficia-a. Se é o consumo, não o faz. E, com o devido respeito para com outros latidos, salvo seja, eu acho que, com uma conjuntura económica enfraquecida, o que importa é fazer fluir o sangue. E esse faz-se fluir com o consumo. Também deveria merecer aplauso esta medida. Nada. Volto a não entender.

Foi porque não entendo nada disto que estive em diálogo com o meu cão - já que ele é tão esperto - a ver se ele me explicava o que não entendo. Virando-me a sua cauda e adjacências imponentes, ele devolveu-me uns latidos ininteligíveis. Desconfio que ele pertence à Oposição, por mais que eu lhe recomende que não se meta em polítiquices.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 13/10/2004

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