AS VOLTAS DA MOÇÃO
O telefone retiniu na secretária do líder. Um toque insistente, compassado, o mesmo toque de sempre.
- Estou…
- Olá, Paulo. Fala o Jerónimo…
- Oi amigo! Sabe que gosto sempre de o ouvir. Quando digo o contrário é só para português ver. Mas temos que fazer isto com cuidado que eu não quero comprometer a minha reputação…
- Ó Paulo. Idem idem, aspas aspas. Mas agora tinha de ser! É que nós estamos a pensar aqui em dar um empurrão ao José, mas queríamos saber se podemos contar com a vossa ajuda?
- Vocês nunca mais param de nos imitar, Jerónimo! Isso já eu disse que ia fazer, há dois dias! Mas não interessa quem dá o primeiro chuto. Bora lá! A gente tá nessa!
- Olha, Paulo, não podes dar uma palavra ao teu amigo Pedro, a ver se ele alinha? Não quero dar-lhe abusos falando eu. Já sabes como ele é, dá-se-lhe o pé e ele quer logo a mão…
- Ok! Tou nessa também!
***
Alguns minutos depois, o telefone do Pedro também tocou.
- Estou?
- Se estás ou não eu não sei! Agora andas sempre lá por fora! Fala o Paulo, Pedro…
- Fala o Pedro, Paulo… Caramba, vê-se mesmo que fomos feitos um para o outro! Pedro e Paulo! Parece bíblico… Então que mandas?...
- Ó pá, o Jerónimo diz que vai propor que se abra a porta de saída ao filósofo… Não alinhas?
- Não sei, Paulo. Primeiro, eu acho que as hierarquias devem ser respeitadas. Se alguém deve abrir a porta somos nós, já que a partir desse momento, nós é que mandamos na casa…
- Ó Pedro! Olha que estás a dar uma passada maior do que a tua perna! Vais ver que vais precisar de quem te ajude a arrumar a casa…
-…depois, não sei se o bigue chife aprova isso, Paulo. Por fim, temos os mercados…
- Tu acreditas nessa coisa dos mercados, Pedro? Não é melhor resolver isto por uma vez? Os mercados agravam-se até resolvermos a crise, mas depois melhoram, pá…
- Mesmo que não acredite, é uma boa desculpa. Olha Paulo, acho que vou perguntar ao Aníbal o que é que ele pensa disto…
- Boa ideia, Pedro…
***
- Já disse que isso não convém nada – disse, com voz formal, o Aníbal, depois de ouvida em silêncio total a exposição do ex-companheiro.
- Mas, assim, vamos ter o Zé até às calendas - respondeu o Pedro.
- Nah! Do jeito que ele vai, vai haver muitas ocasiões para lhe abrir a porta…
- Pois… Mas quem é que vai tomar a iniciativa disso?... Se eu digo “agora não”, como é que daqui a meia dúzia de meses vou dizer “agora sim”? Vão-me tomar por mais um contador de histórias…
- Nada de precipitações, Pedro! E isso não é razão. Em primeiro lugar, ninguém vai notar. São tantos que o povo já lhe perdeu a conta. Em segundo lugar, fala nos mercados. É o que está a dar.
- O chefe manda. Tudo bem.
***
Foi mesmo o José que atendeu. O chefe de gabinete tinha sido destacado para a inauguração do caminho de macadame entre Abraveses e Chão-de-Cabras e a secretária tinha ido tomar o pequeno almoço.
- Diga, Aníbal…
- Ó José, tem de ter muito cuidado!
- Não tenho tido eu outra coisa toda a vida. Veja quantas vezes já pensaram que me tinham apanhado nas curvas e nunca encontraram nada…
- Pois. Mas os outros estão a tentar tramá-lo. O Jerónimo vai dar o pontapé de saída, mas os outros são capazes de o acompanhar.
- (silêncio)…
- A não ser que eu faça alguma coisa. Mas para isso, temos de negociar…
- (silêncio)…
- Está aí, José?
- Ah! Estou, estou. Tava a pensar. Eu não gosto de negociar. E depois, se calhar, vale mais a pena negociar com outros. Além de que eu tenho outras boas defesas…
- Bom... Quem o avisa seu amigo é! Veja lá se tem cuidado. Não convinha nada juntar mais uma crise às muitas que já temos, a começar por si…
***
- Tás-me a ouvir, Chico?
José não perdera tempo. Mal terminara a conversa com o Aníbal, fizera ele mesmo a ligação.
- Então que há José?
- Ó pá! O Jerónimo vai-te tramar. Ultrapassou-te pela direita que foi uma limpeza. É no que dá conduzir tão chegado à esquerda…
- Então que foi?
- Uma moção. Vai já ser anunciada…
- Mas quem se atreve a apresentar moções, quando sou eu o grande especialista? Vou já tramar esse gajo. Ele está a fazer a política da direita… Vou anunciar que esta não é a altura para isso. Vais ver que eles vão pensar duas vezes…
- Até parece que os não conheces, Chico! Aquilo é uma máquina afinada. Se dizem que vão fazê-lo fazem-no. E arrumam-te para canto.
- Nem nada. Então ultrapasso-os eu agora. Já vais ver. Só vou combinar aqui uma coisa com o Paulo e avanço. Ouve o noticiário das oito, Zé.
***
- Tu estás maluco, Chico?
- Não estou nada, Paulo! Temos que desarmadilhar a iniciativa do Jerónimo!
- E como é que fazes isso?
- Muito fácil, Paulo. Só preciso de uma pequena ajuda tua. Eu adianto-me, proponho eu uma moção, atiro-me à direita como gato esfomeado a espinhas de carapau e isso dá-te argumento para dizeres logo que não apoias…
- Ó pá! Parece que andamos a brincar às moções! Agora vais tu apresentar uma?
- Vê lá! Preferes a do Jerónimo? A minha não faz mal a uma mosca, a dele não se sabe. E achas que é bom para vocês pegarem já nesta treta? Da maneira que está, o melhor é deixar o Zé comer a sopa até ao fim!
- Bom… Talvez tenhas razão… Vou falar ao Pedro.
***
- Tá, Pedro? Olha, o Chico vai lixar o Jerónimo. E eu acho que ele tem razão. O temporal é muito ainda.
- Acho bem, Paulo. O melhor é deixar acalmar os mercados.
***
- Pois é, Aníbal, o Jerónimo já não vai a lado nenhum. O Francisco vai tramá-lo.
- Acho que fazem bem, Pedro. Digam que fazem o sacrifício em nome dos mercados.
- Pois…
***
- Ainda bem que fizeram parar tudo, Aníbal. Isto ia ser uma confusão do caraças! É que eu não me deixo ir com facilidade. É bom que tomem todos nota…
E o José pediu à secretária, então já regressada do pequeno-almoço, para ligar ao Francisco. Quando este atendeu, conversaram pela segunda vez naquele dia.
- Ó Chico. Conduziste isso muito bem! Afinal, parece que vai parar tudo…
- Ó José, até parece que não me conheces! Tinha de ser! Ficas a dever-me mais uma, pá. Não te aflijas que terás ocasião de pagar.
- Deixa-te de conversas. Vamos mas é trabalhar.
José pousou o auscultador no telefone, ligou o intercomunicador à secretária e ordenou:
- Ó Isilda! Confirme a minha agenda toda para o mês que vem, com excepção daqueles tipos do FMI. Diga-lhes que só em Maio terei agenda, mas que confirmo depois.
***
Não foi assim, certamente. Mas parece mesmo que foi, não acha meu Caro Leitor?
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