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23.2.11

MEMÓRIA

LEVANTA-TE E CAMINHA!

Não sei por quantos Leitores sou lido semanalmente. Porventura, meia dúzia deles, entre as dezenas de milhar de Leitores que este semanário tem. Mas são eles, os que me lêem, os sujeitos das minhas notas desta semana. Esta coluna, como todas as outras em todos os órgãos de comunicação social escrita, não vale nada se quem a lê não parar dois minutos a reflectir sobre o seu conteúdo. Com espírito crítico. Concordando ou discordando. Mas pensando. E, sobretudo, recolhendo da sua opinião pessoal - formada sobre o texto lido ainda que, eventualmente, não coincidente com a aí expressa - partir para uma acção mais esclarecida na sua intervenção social. Sem a acção social esclarecida de todos nós, não há comunidade. Não há vida social. Não há sequer o indivíduo. Não passamos de pedaços de lixo. A vogar no vazio ao sabor do vento.

Olhamos em redor e vemos o tecido social, de que somos os fios, a romper-se em todos os sentidos. Em todas as direcções. Já não são só os fundilhos que estão gastos. É o próprio forro, que usamos chamar de "alma", que está roto. É notória a agonia de todas as telas que fazem o fato que somos, todos em conjunto. Estão corrompidas. Não pela usura. Mas pelo mau uso. Somos, com nitidez, um fato em desagregação. É visível, com muita nitidez, a morte de todos os valores sociais. Um atrás do outro. A família. A escola. A solidariedade. A honestidade. O escrupuloso cumprimento dos deveres cívicos. Cremo-nos apenas detentores de direitos. E julgamos todos os outros apenas sujeitos de deveres. Berramos, à direita e à esquerda, pela excelência dos outros. Esquecendo-nos de que a excelência tem sempre que começar em cada um de nós. O vocábulo excelência foi substituído pelo da exigência. Cega. Surda. Muitas vezes mais que surda. Absurda. Pare aqui um pedacinho para pensar, meu Caro Leitor. Que segurança - física, cívica, moral - acha que tem? Nenhuma, não é? Se tem filhos ou netos, aprecie a educação que estamos a dar-lhes. Péssima, não é? Se ainda se interessa pela coisa pública, que qualidade política tem ao seu dispor? Baixa, não é? Sendo a Justiça o seu último recurso, quanto confia nela? Pouco, não é? Se está atingir a terceira idade, que qualidade espera para ela? Nenhuma, não é? Quando está doente, como é que é tratado? Não é tratado, não é? Se precisa de um serviço assegurado pelo Estado, como é servido? Mal, não é? Há corrupção à sua volta? Claro que há. Conhece alguém que não pague os seus impostos? Claro que conhece. Abre os jornais ou liga a televisão e só vê notícias sobre tudo isto, não é? Claro que é.

Triste panorama. Mas o seu pensamento não pode ficar por aí. É curto e, sobretudo, não conduz a lado nenhum. A não ser ao lamento. E de nada vale estarmos para aqui a lamentarmo-nos. Não alteramos nada. Continuaremos a assistir ao esfrangalhar da comunidade que somos. E, quando isso acontece, as soluções aparecem. Porque os países não fecham por falência. Antigamente, surgia uma ditadura. Militar, quase sempre. Hoje, estamos a salvo disso. Pertencemos à Europa Comunitária. Uma ditadura desse género seria o isolamento total. Mas há outros géneros de ditadura. A mais provável, é a de Bruxelas. Da própria Comunidade. Que chegará. Quando os países que trabalham, que produzem, que alimentam os fundos - os mesmos fundos que nós despudoradamente desperdiçamos por aqui - se fartarem e disserem que não há mais nada para aqueles meninos mal comportados lá do fundo da sala. E não será menos terrível, essa ditadura, do que as outras à força de baionetas. Seremos colocados a pão e água.

É, por isso, urgente que façamos alguma coisa. Desde logo, temos que reconhecer que quem não luta pela excelência, quem vela pela segurança de cada um, quem dá a educação aos nossos filhos e netos, quem faz a política, quem administra a Justiça, quem precavê a qualidade da terceira idade, quem presta cuidados aos doentes, quem presta os serviços do Estado, quem corrompe ou se deixa corromper, quem não paga os seus impostos, quem faz os órgãos de comunicação, somos nós. Todos. Você também, meu Caro Leitor. Tal como eu. Claro que não todos fazemos tudo ao mesmo tempo. Uns fazem uma coisa, outros fazem outra. Mas no fim, quando vemos a floresta em lugar de ver as árvores, percebemos que grande parte de nós, as árvores, não está a cumprir a sua função. Cada um devia ser excelente na sua função. Se todos fôssemos excelentes, a comunidade no seio da qual vivemos e que é constituída por todos nós seria excelente. Nós não somos excelentes. Não somos bons. Nem suficientes. Nem mesmo sofríveis. Nós somos maus a desempenhar o nosso papel na comunidade de que somos parte. Não admira que essa comunidade seja má. Não admira que esteja a esfarrapar-se. Não admira que já esteja rota em muitos sítios e tremendamente poída nos restantes. E tanto eu como Você, meu Caro Leitor, sabemos que isto conduz a situações terríveis. Temos que fazer alguma coisa. Não adianta exigir ao do lado - e muito menos ao de cima - que faça a sua parte se nós não fizermos a nossa.

Na minha opinião, é necessário que a sociedade portuguesa se torne imensamente mais exigente do que o é presentemente. É com a exigência recíproca que podemos encontrar rumo. Não podemos ser contemplativos. Não podemos desculpar. Temos que exigir. O indivíduo do lado estaciona em segunda fila e não podemos tirar o nosso carro do aparcamento? Exigimos. Chamamos o reboque se tempo houver para isso. O empregado do estabelecimento comercial atende-nos com duas pedras na mão? Exigimos. O tratamento que todo o cliente bem educado deve ter. É sua obrigação empenhar-se. E denunciamos, se for preciso. O cliente trata o funcionário sem a cortesia que deve usar? Recusemos atendê-lo. Conhecemos alguém que não paga os seus impostos? Devemos desprezá-lo por isso. O político promete e não cumpre? Votemo-lo ao ostracismo. O médico ou o enfermeiro não nos trata como a nossa qualidade de doentes exige? Exijamos. E denunciemos o seu comportamento à Ordem ou à associação profissional respectiva. O funcionário público está a falar do futebol com o colega, enquanto esperamos que se digne atender-nos? Chamemos por ele na voz mais alta possível. O professor falta às aulas vezes sem conta? Exijamos a sua substituição. O aluno não estuda? Reprovemo-lo. É necessário que quem não cumpre se sinta envergonhado. É necessário que aqueles que se não empenham no exercício da sua função sintam que não podem contar com a nossa desculpa. Em suma, lutemos pela excelência. A começar em nós próprios. Podemos sempre fazer melhor se não andarmos distraídos. Criemos uma Liga da Excelência, formada por todos a quem a situação actual do País não deixa contente. Por todos os que estão dispostos a modificar as coisas. Por todos os que ambicionam viver num país moderno e organizado. Por todos os que têm vergonha de vestir um fato esfarrapado. E não nos esqueçamos de colocar nos píncaros todos aqueles que sintamos se estão a esforçar por uma país melhor.

Se não fizermos algo assim, se não procurarmos, pelos nossos próprios meios, com as nossas próprias forças, melhorar "isto", nem um qualquer deus nos valerá. Temos apenas uma solução para "isto". Que alguém, tido por Deus, apontou: "levanta-te e caminha!". Ou caminhamos ou ninguém fará a jornada por nós. Ficaremos, para sempre, na pré-história do desenvolvimento humano, cultural, social e económico.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 14/10/2003

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