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24.2.11

CRÓNICA DA SEMANA

A BATOTA CONTINUA

Por razões pessoais, tive de passar os olhos recentemente um olhar sobre o reinado de D. Fernando, correspondente a um período de grave crise que o país atravessou e que havia de redundar na substituição da dinastia e na guerra com Castela. E tropecei neste pedacinho de prosa (História de Portugal, coordenada por Rui Ramos, págs. 129/130):

“Tal como acontecera com os seus dois antecessores, também D. Fernando legislou no sentido de fixar a mão-de-obra rural ao trabalho da terra, obrigando ao cultivo dos campos entretanto abandonados, de modo a garantir a produção de cereais. Foi assim logo no início do seu governo e, sobretudo, com a Lei das Sesmarias. Provavelmente promulgada em 1375. Mas os resultados não inverteram a situação, como o atesta, desde logo, a multiplicação de medidas legislativas de idêntico teor.

Por outro lado, o agravamento dos impostos e a desvalorização da moeda (por várias vezes entre 1369 e 1362) contribuíram para aumentar o clima de tensão social. Foi assim que eclodiram tumultos ou revoltas (uniões) ao longo da década de 1370, em que participaram sobretudo mesteirais (alfaiates, sapateiros, correeiros…), tendo por causa próxima o indesejado casamento de D. Fernando com Leonor Teles, e que ocorreram um pouco por todo o reino, de acordo com as referências de Fernão Lopes na crónica deste reinado.

Na sua governação, D. Fernando favoreceu os sectores da grande nobreza que lhe eram próximos, concedendo doações e criando novos títulos nobiliárquicos.



Num contexto político internacional também ele agitado, D. Fernando confrontou-se com a necessidade de adoptar posições que o comprometiam perante os grandes contendores do seu tempo.”

Achei espantosa esta descrição. Com pequeníssimas adaptações – sobretudo no que respeita ao interesse pela agricultura, hoje desaparecido, mas aplicável à indústria transformadora – o que acabamos de ler serviria às mil maravilhas para descrever a situação de Portugal nos dias que correm. Quase que só temos de mudar o nome de D. Fernando para D. José e tudo o mais ficará certinho. O que nos deve fazer meditar, porque ali em cima se está a falar de Portugal há mais de setecentos anos (SETE SÉCULOS!). E porque tudo aquilo quase desaguou na perda da independência nacional.

Temos pouco hábito de ir atrás, no tempo, e aprendermos como é que superamos as muitas crises em que a nossa História é fértil. Não sei, porque não procurei, se há outros exemplos tão didácticos como este, do fim da primeira dinastia. O conhecimento comum diz-me que há. E, chamam-lhe sebastianismo ou não, tais crises foram ultrapassadas com o aparecimento de um punhado de homens para quem a Pátria era o valor supremo. Para quem o futuro dos seus compatriotas justificava todos os trabalhos e, até, o supremo risco, tantas vezes verificado, da perda da vida na empresa. Claro que esses homens puderam contar com uma retaguarda unida, constituída pelos simples de um povo que só teve dúvidas sobre o caminho a seguir quando os seus líderes ficaram perdidos nos seus interesses venais e nas suas contradições. Quando esses líderes, incapazes de lhes dizerem a verdade, semearam a desorientação pelos meandros das suas mentiras mal contadas.

Vem isto a propósito do que tem sido a sociedade portuguesa nos últimos anos. Andamos perdidos num novelo de mentiras, de “faz-de-contas”, de diz-se que disse não disse e disse mesmo, de informações e contra-informações desnorteantes. É como se vivêssemos simultaneamente em dois mundos paralelos. Um construído sobre as palavras e outro sobre os factos, a realidade deste a reduzir aquele a fanicos. Tudo devido a uma ausência confrangedora de líderes autênticos. Não admira, assim que todos os dias, olhemos a ver se encontramos a rosa-dos-ventos salvadora e dela nem sinal.
Tomemos, para exemplo, o fenómeno mais recente. Os resultados do défice no primeiro mês deste ano. Com um primeiro-ministro a ufanar-se de ter havido uma redução do défice maior do que o previsto no Orçamento. Uma vez mais, a cor da rosa a colorir a realidade. Uma melhoria que teria sido conseguida à custa de uma pequena variação para menos na despesa e de uma grande variação para mais na receita (impostos). Porque quase juro que a realidade é muito diferente. Mas para lhe explicar bem, meu Caro Leitor, tenho de fazer uma pequena explicação prévia para os que disto nada entendem.

O modo como se fazem as contas do Estado não é muito diferente de como se fazem as da nossa casa. E, em casa, para sabermos a quantas andamos, podemos usar dois métodos:

A - ou olhamos para a nossa situação tendo em conta todos os compromissos assumidos e pagos ou ainda não pagos (é o que o Estado faz no Orçamento); ou

B - ou olhamos para a carteira e vemos o dinheiro que lá há, esquecendo os compromissos assumidos e ainda não pagos (é o que o Estado faz na contabilidade do dia a dia).

Como é bom de ver, se eu não pagar os compromissos ou enquanto os não pagar, a situação pode até parecer brilhante. O dinheiro não sai da carteira. O pior vai ser quando eu tiver que pagar os tais compromissos assumidos. O dinheiro da carteira não vai dar e eu estarei na bancarrota.

Tendo em conta isso, junte à expressão radiosa do primeiro-ministro a pronunciar-se sobre o défice em Janeiro último e sobre as cores brilhantes em que ele o pintou o seguinte facto (que presumo ser um só de muitos):

- foram recebidas ordens na Polícia de Segurança Pública para não pagar aos fornecedores de gasolina e aos fornecedores (serviços de transportes colectivos e metro) de passes para os agentes.

Isto é, o défice mostrado a quem vai ter de o pagar (nós) pode ser muito diferente do mostrado pela contabilidade do Estado. O que significaria estarmos a viver, mais uma vez, uma grande mentira. O que até podia não ser grande mal se a diferença houvesse de ser paga por quem nos enfia as patranhas. Mas o pagamento vai ser de nossa conta.

Perguntará o meu Caro Leitor: mas que é que podemos fazer? Eu acho algo. Se se confirmar que a batota continua, temos de fazer duas coisas:

- exigir vigorosamente que nos contem a verdade;

- correr rapidamente, sem cálculos político-partidários, com quem só nos impinge patranhas.

Porque, está por demais visto, enquanto estas duas condições não forem satisfeitas, a batota vai continuar.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 24/2/2011

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