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28.4.11

CRÓNICA DA SEMANA - II



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O SARILHO

Imagine o meu Caro Leitor que comete uma infracção leve ao Código da Estrada. Para si, pode ser um quase-nada. E pagar imediatamente a coima pelo valor mínimo. Mas se não está tão certo assim de que tenha cometido a infracção, decide que vai reclamar. Claro que tem de entregar os documentos da viatura e ficar a conduzir com guias de substituição. Mas nem imagina o sarilho em que mete a administração pública! E, mais, de que modo Você se torna também responsável pelo desequilíbrio das Finanças Públicas que tanto nos aflige presentemente. No seu espírito parece algo fácil. Não paga, entrega os documentos, recebe as guias, faz a reclamação e aguarda pacientemente a confirmação da sanção ou o arquivamento da contra-ordenação. Mas não é. Como lhe vou mostrar. Vamos por partes.

Em primeiro lugar, olhe para o organigrama que anexo a estas notas. Retirei-o da página da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSC), cuja missão é “o planeamento e coordenação a nível nacional de apoio à política do Governo em matéria de segurança rodoviária, bem como a aplicação do direito contra-ordenacional rodoviário.”. Como vê por ele, na sua infracção irão intervir:

- o agente fiscalizador que o apanhou em falta;
- se não foi pessoalmente interpelado na altura, alguém que lhe mande uma carta com aviso de recepção;
-se não levantar essa carta, alguém que lhe mande outra;
- alguém que guarde os documentos enquanto se julga o caso;
- alguém que veja se Você tem razão ou não; e decida o resultado final;
- se for confirmada a sanção e Você decidir recorrer ao tribunal, quem defenda o caso em nome da ANSC;
- alguém que o obrigue a cumprir a sanção;
- se Você não cumprir a sanção, alguém que mande o seu caso para o tribunal;
- novamente alguém que defenda a ANSC no tribunal;
- alguém que lhe devolva os documentos quando o processo for encerrado.

Eu julgava que, apesar de muitos intervenientes, eram só estes. Mas fiquei siderado quando olhei o Diário da República nº. 63 – II Série, de 30 de Março deste ano e vi um anúncio de concurso público lançado pela dita ANSC. Segundo ele, o Estado, através da dita, prepara-se para gastar, pelo menos, UM MILHÃO E DUZENTOS MIL EUROS – qualquer coisa como 240 MIL CONTOS em moeda antiga – num ano, para poder dispor do seguinte serviço (juro que é verdade!):

Elaboração de Propostas de Decisão de Propostas de Contra-Ordenação

Se bem entendo – e não posso garantir que estou a entender bem porque, nestas questões de concursos, uma coisa é o belo idioma de Camões, outra coisa, que pode ser bem distinta, é o verdadeiro significado desse idioma – o que acontece é o seguinte:

- um agente de autoridade fiscaliza e, se for caso disso, contra-ordena;
- se Você não pagar logo, isso é uma proposta de contra-ordenação;
- essa proposta de contra-ordenação é analisada por alguém contratado fora (aqueles a que diz respeito o tal concurso público);
- esses, de fora, fazem uma proposta de decisão;
- e alguém, que deve ser um superior, olha para a proposta e dita “concordo” ou “arquive-se”.
- e isto para todos os passos necessários entre os que pode ver no organigrama anexo.

Escusado será dizer que, ou me engano muito, ou o superior que dita “concordo” ou “arquive-se” é quem, de todos os intervenientes, ganha maior salário e menos tempo tem.

Já viu bem como Você, meu Caro Leitor, pode ser responsável graúdo pelo défice das contas públicas? Há um esforço que o país tem de lhe pedir, nesta hora grave que atravessamos: pague lá as coimas no momento em que o polícia o apanha ou logo que receba a intimaçãozinha para o fazer. E deixe-se de amores próprios feridos. Além do mais, se todos fizermos isto, como a proposta de contra-ordenação se transforma imediatamente em decisão, Você vai ajudar o Estado a poupar UM MILHÃO E DUZENTOS MIL EUROS por ano. Ao fim de dez anos, são DOZE MILHÕES DE EUROS. É um prémio sem jackpot do Euromilhões! E todos nós estamos necessitados de um Euromilhões face a esta nossa organização.

Mas o caso do concurso da ANSC não se fica por aqui. Quem serão os iluminados em condições de concorrer a este concurso? Leia outra vez, por favor, meu Caro Leitor:

Elaboração de Propostas de Decisão de Propostas de Contra-Ordenação

Têm de ser advogados. E não podem ser uns quaisquer, imagino. E imagino só. Porque os documentos de habilitação não constam do anúncio e, se são os constantes do nº. 6 do artº. 81º. do CCP, é “só” isto:

“Independentemente do objecto do contrato a celebrar, o adjudicatário deve ainda apresentar os documentos de habilitação que o programa do procedimento exija, nomeadamente, no caso de se tratar de um procedimento de formação de um contrato de aquisição de serviços, quaisquer documentos comprovativos da titularidade das habilitações legalmente exigidas para a prestação dos serviços em causa.”

E quais as habilitações requeridas? Não sei. Não diz em nenhum lado do anúncio. O que me deixa ficar a sensação de que os ganhadores do concurso já estão escolhidos mesmo antes de decorrer o prazo para apresentação de candidaturas.

No meio de todos os problemas que vivemos actualmente, quem sabe se o maior não é este, o de não haver transparência em quase nada do que o Estado faz. Mas faça por esquecer estas minudências, meu Caro Leitor! E ajude lá Portugal, como os nossos Presidentes todos nos pediram no dia em que minuto estas notas. Pague as suas multas na hora.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 27/4/2011

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