Juro que entendo o Governo. Mas o Governo parece não nos entender. Ou melhor, parece não entender a espiral de desconfiança que está gerada. A qual apenas pode redundar na falência do Estado de direito. Com a trágica consequência de o Estado de direito sermos nós todos. Ou é colocado um ponto final na bagunça fiscal em que o país está transformado ou não auguro nada de bom.
Apertado por um Orçamento deixado à solta tempo de mais, apertado pelas ordens vindas de Bruxelas, apertado pelas suas próprias afirmações e estimativas de défice, o Governo tenta reequilibrar um barco à deriva. Entendo-o. Tenta encontrar tostões em tudo quanto é sítio. E como os velhos caçadores de tesouros, abre buraco atrás de buraco. Pode afirmar-se, com relativo à vontade, que a este Governo não pertence a culpa da situação existente. Nem sequer teve tempo para isso. Mas algo se pede. É que as medidas tomadas não estraguem ainda mais. Como o que acaba de ser feito com os pagamentos por conta do IRC.
De algum modo, eu previ o que ia acontecer quando, no tempo de Sousa Franco como Ministro. Afirmei, nessa altura, que o relativamente baixo montante do pagamento por conta e a promessa de devolução, se não devido, era um logro. Os futuros orçamentos se encarregariam de realizar o logro. Assim tem sido. E assim é. E assim vai continuar a ser. Na teoria. Porque, na prática, cada comportamento desta natureza, por parte do Estado, apenas agrava a situação. Nada como a injustiça fiscal para gerar evasores. Quando nenhum outro recurso fica para o Contribuinte para evitar a injustiça, ele foge. Assim vai ser mais uma vez em 2003. Não é difícil adivinhar que assim será. Em muitos casos, mesmo, não terão os Contribuintes outro remédio, Apenas porque os pagamentos por conta ultrapassam, nesses casos, a possibilidade pagadora dos Contribuintes visados.
O Governo, ao contrário dos Contribuintes, deve viver num país das maravilhas. Presumir que não há crises, que o desemprego crescente não arrasta a margem de manobra económica e financeira do pequeno empresário, que a margem de lucro é esmagada em tempos difíceis, que todos os negócios são iguais, que mesmo as taxas médias de lucro, em tempos normais, permitem pagamentos por conta – não devolutíveis – ao nível a que foram fixados, é viver num etéreo, irreal país das maravilhas. Ao fixar os pagamentos por conta por referência às vendas e ao nível a que os fixou, o Governo está a presumir que os negócios dão todos, pelo menos, uma margem de lucro líquida – note-se bem, LÍQUIDA, antes de impostos sobre o rendimento – de 10%. Faço um desafio ao Governo: que mande alguém comigo fazer as contas de tantas pequenas e médias empresas, de tanto pequeno comerciante. O qual, pura e simplesmente, não vai poder efectuar, por falta de recursos, os pagamentos por conta do IRC. E ninguém pode pedir a ninguém que faça mais do que aquilo que pode. Vão chover, portanto, os não pagadores do estabelecido pela Lei. E, desta vez, nem sequer vão ficar à espera dum qualquer perdão de juros para pagamentos atrasados. Porque não podendo pagar agora, nunca mais vão poder pagar.
Excertos da crónica O PAÍS DAS MARAVILHAS - Magalhães Pinto - Vida Económica - 24/11/2002
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