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27.2.07

RETALHOS LITERARIOS


"Naquela viagem de regresso ao Porto, éramos dois desajeitados, Maria do Céu. Quase não falavas, não obstante sorrisses, um pouco tristemente, de cada vez que eu tentava fazer piada e desfazer as nuvens de borrasca, acumuladas na véspera. Por mais duma vez - não sei se o notaste - fiquei a observar-te de soslaio, enquanto parecias encontrar no relevo, a desfilar lá em baixo, não sei que contos de menina a prenderem-te a atenção. Uma das vezes, vi os teus olhos marejados de água. Não cairam as lágrimas. Ficaram prisioneiras desses teus olhos lindos. Desejei tanto, nesse instante, vê-las rolar nas tuas faces! Talvez lavassem os remorsos que intimamente me assolapavam! Desisti de conversar contigo. As feridas curam-se melhor quanto menos nelas se mexe, pensava eu, mais por desculpa que convencimento. Pousei suavemente a minha mão na tua. Estava gelada. Era como se tivesses voltado a ser a mulher distante e fria pousada na penumbra do Borboleta Negra. Apertei-ta ligeiramente, intentando dizer-te, no gesto simples, que eu estava ali, a segurar-te, a estabelecer um elo entre os polos desertos da indiferença, nos quais já viveras e para os quais me parecia retornares, e os trópicos esfusiantes de vida, para os quais eu queria arrastar-te. Maldisse então este meu feitio, possessivo, ciumento, tantas vezes violento, sei lá, paternal, a transformar-me a doçura numa obscena orgia de agressões morais e físicas, que eu não conseguia dominar."

Excerto de A DÚVIDA - Magalhães Pinto - 1994

(Imagem da Google)

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