(continuação)
Saiu-te a sorte grande, Carapinha, nesta lotaria de bilhete obrigatório! Se eu um dia contar isto ninguém vai acreditar. Cinco centímetros mais para cima ou mais para baixo e adeus Carapinha. Aqui, na guerra, a vida de um jovem de pouco mais de vinte anos tem cinco centímetros de margem de segurança. Por cinco centímetros se fica vivo ou se vai para os anjinhos. Se não és tolo, Carapinha, és um herói. Ninguém coloca a vida em cinco centímetros de segurança. Podias estar agora, tranquilo, lá no teu Alentejo, a cuidar dos tomates. Só mesmo tu!. É preciso ter tomates para arriscar a vida com apenas cinco centímetros de defesa...
Havia alvoroço, lá em baixo, no limiar da bolanha, junto à viatura mais atingida. A dos pneus furados. Alguns homens, em cima da viatura, olhavam para o chão desta, com ar compungido, de olhos estuporados, imóveis, arregalados. Dois não conseguiram conter os nervos e desataram num choro convulso. Estendido no chão, com o semblante sereno, expressão quase feliz prescrutando o infinito por cima da viatura, estava estendido um jovem aloirado. Um buraco enorme no peito, onde caberia um punho fechado e donde jorrava ainda sangue, acrescentando a poça já formada. O "Xabregas". Era ardina, em Lisboa. Vendia jornais para os lados de Santa Apolónia. "Olha o Notícias... Traz a bola!... O Popular... traz a bola... ". O "Xabregas" não gritaria mais, a plenos pulmões, o seu artigo. Nem os seus camaradas de caserna o ouviriam mais contar as rocambolescas histórias dos bares do Cais do Sodré, que ele conhecia como as palmas das suas próprias mãos. A estrada do "Xabregas" de Santa Apolónia tivera a sua estação de destino naquela picada anónima da Guiné, no ponto onde ela fazia uma espécie de ponte por cima da bolanha. Nascera na Bica. Vivera, até ali, um pouco por cada canto de Lisboa.
(continua)
Magalhães Pinto
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