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15.10.09

CRÓNICA DA SEMANA - II

IN…SEGURANÇA SOCIAL

Era um mail pungente, aquele que caiu na minha caixa de correio electrónico. Devidamente identificado, com NIB e tudo. Um grito de quem, até agora, teve vergonha de expor a sua situação. Uma vergonha enterrada pela crise na montanha das necessidades prementes, de que comer é a primeira. Um casal. Quarenta e cinco anos cada um. Com dois filhos. De quinze e seis anos. Até há pouco mais de um ano, a vida parecia correr bem. Na empresa de contabilidade de que os dois eram os únicos sócios e gerentes. Trabalho duro mas compensatório. As avenças entravam com regularidade e permitiam sonhar. Com a casa comprada por recurso ao crédito bancário. Com o automóvel comprado com recurso a uma dessas empresas que emprestam dinheiro a cerca de 30% ao ano. Os filhos a estudar e a aproveitar. Até que…

Sobreveio a crise. As falências aceleraram. Azar. Quase todas as empresas a quem prestavam serviços faliram. As avenças desapareceram. A empresa de contabilidade que era sua seguiu o mesmo caminho. Começaram por ficar para trás os impostos. Alguns deles, a pagar quer se cobre quer não. A seguir foi a prestação do carro. Depois, deixou de ser paga a prestação da casa. Os dois sócios e gerentes sem trabalho. Têm lutado para o conseguir. Mas quem vai contratar contabilistas nesta altura? A muito custo, lá conseguiu duas avenças o chefe da família. E, para outros trabalhos, quem contrata trabalhadores com quarenta e cinco anos? Difícil. Os filhos a gastar. Os credores a agirem. O Fisco penhora a casa, penhora a conta bancária, penhora uma das avenças conseguidas. O banco que financiou a casa quer executar a hipoteca da mesma. A empresa de crédito ao consumo pretende o carro de volta. É o mundo, em que uma família assentou os seus comportamentos, os seus sonhos, a sua ambição de uma vida melhor, que desaba fragorosamente.

Um parêntesis aqui. Para comparar a atitude do Fisco num caso destes com a Lei, recentemente publicada pelo Governo Sócrates, que permite aos inquilinos não pagar a renda nem ser despejados se tiverem salários em atraso ou estiverem desempregados sem subsídio de desemprego. Que privilégios especiais terá o Estado em relação ao direito de propriedade dos senhorios? Ou qual é a diferença substancial entre a prestação da casa e a renda por aluguer? Adiante. Buscar Justiça em Portugal, nos tempos que correm, é tarefa mais frustrante do que procurar agulha em palheiro. Fechar parêntesis.
Tenho nos meus ouvidos, ainda, uma das frases de campanha do actual e futuro Primeiro-Ministro. “Devíamos estar orgulhosos, nós Portugueses, porque Obama, o Presidente dos Estados Unidos, quer implantar na sua poderosa pátria um sistema de segurança social idêntico ao nosso”. Não é possível estar orgulhoso depois do conhecimento deste caso relatado, o qual até nem será exemplar do sofrimento maior. Mas que também dá para perguntar: porque é que os gerentes e sócios das pequeníssimas sociedades não podem ter apoio social quando perdem o seu trabalho? Que presunção é essa de que alguém, só porque trabalhava para si mesmo, não pode ficar sem trabalho? É que os dois indivíduos referidos no relato não têm acesso ao subsídio de desemprego. Porque não? Numa altura em que a iniciativa do trabalho independente pode ajudar a resolver os problemas sociais, porque é que se pune em vez de premiar ou, pelo menos, tratar por igual, quem um dia usou esse meio para prover à sua subsistência sem ser peso para ninguém? Ademais, quando há o rendimento mínimo assegurado para uns tantos que dele precisam e para uns tantos que a ele não fazem jus?

Claro que eu não coloco de lado a necessidade do equilíbrio sustentado da Segurança Social. Se nada se fizesse, teríamos provavelmente a falência do sistema aí para diante. São muitos os factores que contribuem para um progressivo desequilíbrio, o qual temos que contrariar. O envelhecimento progressivo da população. Em trinta anos, ganhámos dez de esperança de vida mais. Acompanhado pelo absurdo de cada vez deixamos de trabalhar mais cedo, quando tudo aconselhava que a idade de reforma acompanhasse o envelhecimento, sendo cada vez mais tarde. Acompanhado, também, pela queda da taxa de natalidade. Isto é, cada vez menos adultos para sustentar cada vez mais idosos. As elevadas taxas de desemprego, que as crises só tornaram mais notórias. Exigências de saúde cada vez mais preventivas, que o envelhecimento agrava. Para só citar os factores de insustentabilidade mais graves e menos condicionáveis. Para fazer com que o Estado Social continue a funcionar também para os nossos filhos e, eventualmente, para os nossos netos, vamos assistir, provavelmente, à progressiva redução dos riscos cobertos pela segurança social. O que vai aumentar a nossa insegurança. As pensões nunca mais voltarão a ser o que já foram. E vamos ver o que se vai passar na Saúde. O Estado Social vai ter que reduzir as contrapartidas que dá, para assegurar a cobertura dos riscos maiores, de que o sustento da velhice será um dos mais importantes. Mas, o meu ponto é que, ao longo das reformas que cada vez mais reduzirão em qualidade as coberturas do Estado Social, haveremos de ter sempre presente que todos somos filhos de Deus e que para situações iguais deverá haver contrapartidas iguais e que para situações desiguais deveremos ter contrapartidas proporcionais.

Estou relativamente à vontade para falar deste jeito. É que acabo de ser atingido pelas reduções das contrapartidas do Estado Social. Aceito-o com bondade e com o orgulho de estar a contribuir para a sustentabilidade do Estado Social. Aliás, acho que o Governo de José Sócrates deu mais uma excelente achega a essa sustentabilidade com a redução que me fez. Cerca de vinte e cinco euros por ano. Mais ou menos o que um Ministro gasta de gasolina para ir no seu “espada” de casa até ao Ministério (se não houver engarrafamentos). É verdade, meu Caro Leitor. Não se ria. Fui combatente em zona de perigo na Guerra Colonial. E o Governo decidiu mexer no complemento de pensão relativo a essa qualidade. Bem haja o Governo. Pode ser que não adiante muito à sustentabilidade do Estado Social. Pode ser que isto seja um alívio relativamente insignificante para o Orçamento Geral do Estado. Mas a atitude do Governo deixa-me com um enorme orgulho. É que, a partir de agora, posso também eu dizer que estou a colaborar no gigantesco esforço que há que fazer para equilibrar as contas do Estado. E, quem sabe, talvez essa redução possa servir para dar um pequeno apoio a casos como o que relatei no início desta croniqueta. Se tal acontecer, até acho que o meu “sacrifício” merece uma medalha. Quanto mais não seja, para juntar às da Guerra.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 15/10/2009

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