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22.10.09

CRÓNICA DA SEMANA - II

AS ARMAS E OS BARÕES ASSINALADOS

Da ocidental praia, claro. Mas nem sequer se pode dizer que navegam por mares nunca dantes navegados. Porque o fenómeno é recorrente. Há muito tempo, parece. Ainda que quanto mais a gente olhe para ele, menos o entenda. O que faz do fenómeno um truque de ilusionismo. Quanto mais a gente olha, menos vê. Sobretudo, não vemos os ilusionistas. Não sabemos quem são. Um truque de ilusionismo que rende milhões aos ilusionistas. Mas havemos de convir que, nestas coisas do ilusionismo, temos sempre duas metades. De um lado, os espertalhões que executam o truque. Do outro lado, os palermas que se deixam levar pelas aparências.

Vamos lá a ver. Compras são compras. Quer seja de sabonetes, ou de presuntos, ou de kalashnikovs, ou de submarinos. De um lado, há o comprador, o tipo que tem o dinheiro. E, do outro lado, há o vendedor, o tipo que tem os produtos. E se o do dinheiro vai às compras, a primeira coisa que faz, se não for palerma, é ver onde está o produto pretendido ao melhor preço. Depois de saber o onde, enceta a negociação. Se for palerma, pega no produto e paga o preço da etiqueta. Se for, já não digo um iluminado, mas consciente, negoceia o preço. Então se a compra for de coisas que não se compram todos os dias, é sempre vantajoso negociar o preço. De certeza que se traz a mercadoria por preço inferior ao afixado. E se, por absurdo, o vendedor é um tipo honesto, daqueles de preço fixo, que não faz nenhum desconto mesmo correndo o risco de não vender, o comprador sai da loja com a certeza de que fez o melhor negócio possível e pode ir, feliz e contente, de consciência tranquila, para casa.

Bom. Isto parece ser o comportamento trivial de um comprador. Seja de sabonetes, ou de presuntos, ou de kalashnikovs, ou de submarinos. Mas eu devo ser um ceguinho que não percebe nada de certas compras. Porque se a teoria funciona para sabonetes ou presuntos, não é assim para kalashnikovs ou submarinos. Ou, já agora, para aviões. Armas. Aí, os contratantes encontraram um modo mais subtil e artístico de fazer os negócios. É aqui que entra o tal truque de ilusionismo. De um lado estão as armas. Do outro lado, estão os barões. As armas, em grandes fornecedores internacionais. Os barões, do lado dos compradores, geralmente no Governo. E gera-se entre uns e outros um negócio que é mais espantoso do que serrar a mulher metida numa caixa, no meio do palco. É mais ou menos assim:

- Preciso de kalashnikovs (ou submarinos ou aviões)…
- Tenho. Custam um milhão…
- Não pago mais de meio milhão…
- Ok. Mas vamos fazer assim: você paga o milhão já e, depois, eu devolvo meio milhão investindo no seu país mal afamado, a título de contrapartidas desta compra, o meio milhão sobrante…
- Pois… mas quando é que investe?...
- No próximo século…
- Mas assim vai ganhar a dois carrinhos!...
- Isso é o que você pensa… Investir no seu país é a fundo perdido…
- Ok… Negócio fechado…

Está meio truque realizado. A outra metade terá que ser realizada quando os barões já não são os mesmos. Eu olho, olho, olho para isto e sinto-me no circo. Não entendo. Não entendo porque é que o negócio tem que ser assim tão “artístico”. Se fosse eu que estivesse a fazer a compra, estava-me nas tintas para o que o vendedor se propusesse fazer no futuro. O meu pai, que Deus tem, fartava-se de me dizer: “Filho! Nunca te esqueças de que vale mais um pássaro na mão do que dois a voar!”. E o meu pai era um sábio. Não tinha andado na escola muito tempo, mas tinha a sabedoria de um transmontano prudente e, porque não dizê-lo, algo manhoso. Era muito difícil comer-lhe as papas na cabeça. Que o diga eu, que tantas vezes inventei, sem sucesso, explicações para o atraso à refeição que o derriço de ocasião tinha provocado.

Bom. Os contratos para comprar equipamento militar são como os truques de ilusionismo. A gente olha o modo como são feitos e não os entende. Quanto mais olha menos vê. Mas daí não viria mal ao mundo. Muitos truques são, inclusivamente, divertidos e não fazem mal a ninguém. Mas quando, agora, é veiculado para o nosso conhecimento que Portugal tem cerca de dois mil e oitocentos milhões de euros (repare bem, meu Caro Leitor: 2.800.000.000 euros) por cobrar, o truque faz-nos engolir em seco. Caramba! 2.800.000.000 de euros é muito IRS e IRC! Então não era melhor ter pago menos – vou exagerar, por diferença – 1.000.000.000 de euros na compra, em vez de ficar com o tal direito a contrapartidas que nunca mais se recebem?

A esmola feita aos vendedores de equipamento militar é tão grande que os pobres que somos têm que desconfiar. Muito mais quando vêm a lume histórias de burlas, falsificações e outras malandrices a envolver tais negócios. E, aos poucos, começamos a ver, no truque, contornos que agravam o enviesado com que o olhamos. Volta que não volta, tomamos conhecimento, pelas revistas das fofocas – como a Hola ou a Gente – da existência de autênticos barões de vida faustosa. Havia um em Espanha, posteriormente caído em desgraça, que até tinha torneiras de ouro no seu iate de luxo. E quando queremos explicação para tanto fausto, lá chega ela, meio em segredo: é intermediário em negócios de armas. Ah! Então o truque fica explicado. Pelo meio de tais negócios, há gente que ganha rios de dinheiro. E a gente a olhar para o lado direito do palco quando o negócio se passava na esquerda alta! É a essência de todos os truques de ilusionismo: fazer o espectador olhar para o chapéu quando o coelho está no bolso!

Fica disto tudo interrogações cruciais. Se a gente, nós, os papalvos dos espectadores, acaba por perceber o truque, porque é que os pacientes e sacrificados dos governantes não o percebem? E, se o percebem, por estão de acordo com ele? E, se o percebem e estão de acordo com ele, que ganham com isso? E se ganham com isso, onde é que guardam o ganho? Tenham muita paciência os barões assinalados, mas têm que explicar isto. Têm que vir à praça pública dizer-nos porque é que os negócios têm que ser feitos com truques e não escorreitamente claros. E por uma razão simples. É que eles podem ser barões, mas só são assinalados porque nós os assinalámos. Com uma cruzinha, é verdade. Só uma cruzinha. Mas uma cruzinha que pode (e deve) também servir de cruz para crucificar aqueles que se não expliquem, explicando-nos. E, se tal não suceder, se o truque, ou a arte, ou a manha, ou a malandrice, ou lá o que seja, não nos for devidamente explicado, então é nosso dever fazer tudo para que o palrar de tais barões seja canto de antiga musa.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 22/10/2009

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