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18.10.09

MEMÓRIA

PROPAROXÍTONO

É uma palavra que guardo dos meus tempos de escola, como uma das mais complicadas e bizarras. À primeira vista, muito mais adequada para servir de nome a um qualquer composto químico, mistura de gás propano, de oxigénio e de ozono. Mas não. A palavra estava ligada à alquimia gramatical e não à mixórdia química. Parecia-me um peixe fora de água, o diabo da palavra. Era difícil de fixar, era difícil de pronunciar, era difícil de escrever. Verdade seja que ela – mais as suas familiares oxítona e paroxítona – surgia já quando o estudo começava a ganhar uns laivos de intelectualidade. Até aí, dividíamos as palavras, quanto à localização da sílaba tónica, com nomes vulgares de lineu, como eram agudas, graves e esdrúxulas. Depois, chegava o erudito e lá íamos para as “ítonas”. Mas fiquei sempre com raiva à palavra. Tanta que, apesar de contar com milhões de palavras escritas nesta minha vida escrivã, pouquíssimas vezes a terei utilizado. Para mim, proparoxítono era algo que ficava para além da realidade comezinha de todos os dias. Acho mesmo que, antes do aparecimento das novas tecnologias, proparoxítona significava, para mim, aquilo que hoje se designa por virtual. Algo que está para além da realidade. Tocável. Palpável. Sensível. Compreensível.

Pois bem. Toda esta polémica em redor de uma cassete desaparecida a um jornalista é, para mim, proparoxítona. Na medida em que se me afigura de uma realidade absolutamente virtual. Vejamos em pormenor.

Um jornalista gravou conversas tidas com gente ligada a um processo muito mediático. Mas não é isso que eles geralmente fazem? Particularmente os profissionais inteligentes e honestos, que querem salvaguar, com a maior realidade possível, as declarações que os entrevistados lhes fazem? Tenho sido entrevistado muitas vezes na minha vida. E nunca me passou pela cabeça que o jornalista não estivesse a gravar. E, também, nas muitas vezes em que nas minhas declarações, estava algo que o jornalista não podia compreender sem que eu lhe contasse algo que não queria ver publicado, mas que lhe era essencial à compreensão dos factos, eu lhas contei,sabendo que estava a ser gravado, mas dizendo ao jornalista que o que lhe dissera não era para ser publicado. E não me recordo de ver desrespeitado o meu pedido. Creio que, neste caso, também não foi. Pelo menos, até ao misterioso desaparecimento da cassete.

Outra vertente da polémica é a EVENTUAL quebra do segredo de justiça. Repare o meu Caro Leitor. Aquele EVENTUAL não está ali por acaso. Na generalidade do ruído ensurdecedor feito, e nesta vertente da questão, sempre a afirmação vinha acompanhada do termo. Isto é, não se estava a fazer barulho por causa de algo que acontecera. Reclamava-se em relação a alguma coisa que PODIA TER ACONTECIDO. Isto é, estávamos a discutir a virtualidade e não a realidade. Tanto quanto sabemos até agora, é ainda virtual aquilo que conduziu à demissão de um director nacional da Polícia Judiciária. Mas há mais. Estamos para aqui acirrados porque PODE TER HAVIDO quebra do segredo de justiça. Então, e cadê os outros? Aqueles que sabemos quebraram mesmo tal segredo no passado? Se o barulho é este por uma potencial quebra de segredo, então têm que ir já para a cadeia aqueles que sabemos de fonte limpa que o quebraram.

Claro que pode haver algo que nós desconheçamos em tudo isto. Claro que haverá já quem conheça o conteúdo da cassete desaparecida. E que nela exista, realmente, algo de extreamamente censurável. Mas, por amor de deus, não me estraguem as férias. Discutam lá tudo isso em privado. E quando estiverem em condições de me apresentarem os facto reais, então venham à praça pública apontar o dedo, assinalar culpados, castigar criminosos, libertar inocentes. Isto é, por favor discutam apenas a realidade na minha frente. Estou cheio de virtualidades, proparoxítonas cá na minha ideia. Se continuam a insistir no mundo virtual, o que vai acontecer inexoravelmente é que eu me convenço de que quem discute também é virtual e os afasto, para sempre, da minha vida real. Tal e qual faço nos exorcismos das personalidades fantasmagóricas dos meus pesadelos.

Tanto quanto me é dado apreciar, o misterioso caso da cassete desaparecida apresenta-se assim. No centro de todo este fenómeno está um jornal e um jornalista. A notícia bombástica original, desta vez, não está fora do ambiente jornalístico. É aquilo a que eu chamaria, uma notícia própria. Por uma vez, os jornalistas não estão a trazer à opinião pública factos alheios dos quais tiveram conhecimento. O objecto da notícia são eles próprios. O que se passou, passou-se no seu meio. Tal como a notícia é trazida ao nosso conhecimento, há ladrões no meio dos jornalistas. E é esse o facto central. Depois, há quem, apropriando-se da cassete, reproduz o seu conteúdo, manipulado ou não. Directa ou indirectamente, há trapaceiros no meio dos jornalistas. Ou como agentes ou como cúmplices. Esta é que é a notícia. O que vem a seguir só pode entender-se neste Portugal onde o norte parece estar perdido há muito tempo. Aliás, mais o sul do que o norte. Mas é com o vindo a seguir que esta já frágil realidade que vivemos se forna ainda mais frágil. Vendem-se jornais aos montões. Por causa de uma notícia inteiramente criada no seio dos jornalistas. O jornalista gravou, o jornalista guardou o que gravou, o jornalista não protegeu o que tinha gravado. E, ao agir assim, desprotegeu totalmente o segredo das fontes. E ao desproteger as fontes e o que elas lhe disseram, ainda colocou em risco as testemunhas de um processo gravíssimo que, quer queiram quer não, esta nossa sociedade vai ter que julgar. No centro de tudo, esse jornalista e ainda mais um ou mais que, roubando a cassete e permitindo a publicidade do seu conteúdo, desonraram a sua profissão, destruiram para sempre a confiança que, para salvaguarda da nossa sociedade, tem que existir entre entrevistador e entrevistado. Não importando para o caso se este último é prevaricador ou não. O resto são nuvens de poeira, é realidade virtual, é proparoxítono cá para o rapaz. Com franqueza. Acredito que o autor de tudo isto não é o jornalista proprietário da cassete misteriosamente desaparecida. Seria diabólico e execrável se fosse. Mas sei que, se ele quisesse atingir a notoriedade rapidamente, não poderia ter-lhe acontecido coisa mais abençoada.

E agora? Creio que já não há nada a fazer. É mais inquérito menos inquérito, que vai demorar o que demoram todos os inquéritos (recordem, por exemplo, o inquérito do PS à morte de Sousa Franco). Isto é, uma eternidade. E que terminará como terminam todos os inquéritos (recordem o mesmo). Isto é, com nada. Mas também é o mesmo. Ainda que os inquéritos terminassem – passe o pleonasmo – conclusivamente, já todo o mal estaria feito. Irreversivelmente. Entretanto, vamos vivendo todos a realidade virtual. Até que todo o país se torne, ele próprio, virtual. Isto é, proparoxítono. Que raio de palavra! Ou será que raio de país?

Magalhães Pinto, em VIDA EOCNÓMICA, em 17/8/2004

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