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23.10.09

MEMÓRIA

OS SÁBIOS

O meu ego desceu aos infernos. Amachucado. Reduzido a cacos. Esfarelado pela percepção da realidade. Durante uma vida quase inteira - descontando apenas a época das fraldas - pensei que o meu saber era mediano. O que, em Portugal, pela reduzida abertura do leque da sabedoria, significava estar perto dos mágicos que tudo sabem, embora também não muito distante dos felizes que não sabem nada. Mas eis senão quando - mais uma frase pedante que me ficou daquela consciência de quase sabedor e quase ignorante, que era minha - as notícias pespegam comigo na lama. Subitamente, passei a ficar muito perto dos "artolas" e muito longe dos "espertos". Tudo porque, de repente, percebo que em Portugal há sábios. Pelo menos três. Mas não é o número que importa. Bastava a existência de um para eu descer do patamar da média para a penumbra do quartil inferior. Quase ia a dizer "anterior". Como as alimárias. Ah! meu país de estimação! Finalmente, pesem embora os gritos de desespero do meu Presidente sobre os males da educação, tens sábios! Deixáste para sempre o inferno de Dante e subiste ao Olimpo de Júpiter!

A culpa desta minha queda é da GALP. Já tinha as culpas de alinhar na subida desenfreada do preço dos combustíveis. Agora fica com a culpa de elevar, por decreto, a qualidade científica média dos Portugueses, com a concomitante queda do posicionamento de cada um faze à média. Talvez esteja bem. Sobe o preço dos combustíveis e sobe a sabedoria. Talvez seja um preço justo. Que pena que a GALP seja privatizada, ainda mais privatizada, numa altura em que contribui, deste modo, para o nosso acrescido saber. Uma privatização para a qual existem vários pretendentes. Sobre o mérito de cada qual o Governo tinha que decidir. Mas o Governo é como eu. Ganhou, também subitamente, a consciência de que não é capaz de apreciar esses méritos. E nomeou três sábios para fazerem o seu, dele Governo, trabalho de casa. É isto que eu aprecio no Governo. A sua confessada modéstia. Como um dia alguém disse, "o tempo dos sábios no Governo já passou". Se não foi isto, foi algo assim, a querer dizer o mesmo. Decorria o ano de 1968. Ouvi-o numa conversa em família. Daí, que seja louvável contratar os sábios que por aí existam. Podíamos mesmo chamar-lhes sábios a recibo verde. Porque por aí terão que ser cumpridas as obrigações fiscais dos ditos. Que sábio também paga IRS. A não ser que, tal como acontecia na Velha Grécia, os sábios trabalhem de borla e vivam de esmolas públicas.

Os sábios são três. Devo confessar que a dois deles mal conheço. O que não é de estranhar. Sábio paira nas alturas e eu sou bem rasteiro. É assim como a formiga e o elefante. Tenho a certeza que uma formiga não sabe o que é um elefante. A sua capacidade para entender o mundo não atinge essa dimensão. Mas a um deles conheço algo bem. Conheço, no sentido de que já ouvi falar dele. Porque os sábios nunca chegam a ser bem conhecidos pelos que não atingem essa dimensão. A não ser muito mais tarde, quando o pó da História repousa já sobre os frutos do seu pensamento e da sua acção. E, com toda a franqueza, acho que está muito bem escolhido para a função supracitada. É um especialista na venda de participações do sector público. E de as entregar a quem ele muito bem entende. Por bom preço, naturalmente. Mesmo que, para tal, tenha que rectificar o preço por que as vende. Ou ir buscar uma Lei ao tempo de Salazar. Ou boicotar uma assembleia que outros accionistas pretendam fazer para impedir que ele cumpra os seus desígnios. Vai mais longe. Se quem quer comprar não tem dinheiro suficiente, ele arranja maneira de resolver a dificuldade. Associa outros compradores de faz de conta. Tem muitos conhecimentos e sempre encontra alguém disposto a cumprir o papel.. Tem predilecção especial por certas soluções. Não estranharemos se a GALP acabar numa OPA, perdão, sopa. Sopa no melo, perdão, mel. Devo estar com a geringonça avariada. Hoje não sou capaz de escrever direito. Quando isto me acontece, é do catrago, perdão, carago. E perdão outra vez por esta minha terminologia tripeira, terra onde, bem ou mal, nasci. Embora não esteja em festa. Até sou do Benfica. Voltemos aos direitos. Não é que faça grande diferença algo não ser direito. Os direitos também se fizeram para não serem respeitados. Se todos os direitos fossem respeitados, de que servia existirem? Não precisavam de existir, né? Nem precisavamos de falar neles. E uma grande sabedoria dos sábios reside precisamente nesse ponto. Serem capazes de parecer que defendem todos os direitos, não o fazendo. O tal meu conhecido é um grande especialista nisso. Tem grande visão estratégica. Por falar nisso. Alguém saberá, por aí, onde é que ele aplica a sua sabedoria no dia a dia? É que isto de ser sábio não pode conhecer intermitências. A sabedoria ou existe sempre ou não existe. Uma sabedoria intermitente não é senão conhecimento corriqueiro aplicado aos interesses concretos imediatos.

A existência dos sábios é uma excelente ideia. Vai meter a viola no saco a muita gente. Amanhã, qualquer que seja a decisão, se alguém perguntar o Governo porquê tal solução, este sempre poderá dizer que a desisão é sua, mas não é seu o saber. É dos sábios. Pode mesmo dar-se ao luxo de mostrar erudição e, quando questionado sobre o porquê da sua decisão, afirmar: "Magister dixit". Com a virtude de isto ser dito numa língua morta e não ser, por isso, confundível com o americano. Isto é, com o inglês da América. Ademais, numa privatização da grandeza desta e com o sentido eco-estratégico desta (o eco é de económico e não de ecológico, pelo menos desta vez), é bom que se fale numa língua que ninguém entenda. Isto é, morta. Por outro lado, se alguém cair na patetice de questionar os sábios sobre a decisão aconselhada, eles vão ficar a rir-se. Não têm obrigação nenhuma de responder a quem quer que seja, a não ser a quem os contratou. Isto é, a quem lhes paga os carcanhóis.

Isto é, eu só vejo vantagens na convocatória dos sábios para a privatização da GALP. Já do mesmo aviso não é o meu primo Calisto, que encontrei há dias, depois de termos andado desavindos. Para os que não conhecem o meu primo Calisto, sempre digo que é um aldeão que costuma chamar aos bois pelo nome. Aos dele. Que não se mete com os bois dos outros. Disse-me ele que a chamada dos sábios à liça enferma de dois grande males. O primeiro, o da negação. A Doutora Manuela farta-se de pedir que cortem nos funcionários públicos e lá da Economia não a ouvem. Pelo menos durante mais um mês, haverá ter funcionários públicos a mais. E o segundo mal é o da contradição. Como sábios que são, os ditos deveriam ter por tutela a Ciência. E são serem tutelados pela Economia. Não encontrei logo resposta para o meu primo. E quando a encontrei, já ele ia longe, varejando os bois e animando-os de vez em quando com um meigo "Anda Ruço! Anda Malhado!". Já não valia a pena responder-lhe. Os bois já tinham dado a resposta.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 11/5/2004

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