AMEAÇA E OPORTUNIDADE
A história é um clássico da teoria empresarial. Conta-se que o dono daquela fábrica de calçado, pretendendo alargar o seu mercado, enviou um dos seus vendedores a Angola, tendo em vista iniciar as vendas naquele território. Chegado ali, o dito vendedor não tardou a enviar um telegrama para a empresa, dizendo: "Regresso no próximo avião. Inútil tentar vender. Anda toda a gente descalça.". E regressou. Mas o empresário da fábrica de calçado não era homem para desistir facilmente. E umas semanas mais tarde, fez seguir para Angola outro dos seus vendedores, com o mesmo objectivo. E, para sua surpresa, escassas horas depois de chegar ali, o vendedor estava a telegrafar, dizendo: "Nunca mais saio daqui. Ainda anda toda a gente descalça.".
A história, anedótica que seja, ilustra, de um modo simples e claro, duas atitudes opostas face a um mesmo facto. O que um dos vendedores olhava como desencorajamento, o outro via como uma esperança. Onde um considerava um risco, o outro lia uma excepcional oportunidade. Creio que o alargamento da comunidade europeia, a que acabamos de assistir, se apresenta para Portugal como Angola para os dois heróis da nossa historieta. Uma ameaça e uma oportunidade. Como sempre, quando a situação é assim, o resultado final será mais produto do modo como encararmos a situação e, concomitantemente, agirmos, do que das condições objectivas da situação considerada.
Andemos um pouco para trás e recordemos a nossa adesão à Comunidade. Éramos, então, o país menos desenvolvido da Europa, porventura apenas com a Grécia a pouca distância. Também então tivemos - ou, pelo menos, mostramo-lo - receios da adesão. Desde a perda da identidade até à queda dos nossos centros de decisão nas mãos de "estrangeiros", afirmamos tudo. Seguramente não estávamos a inventar. Também então, como agora, a situação era de risco e, simultâneamente, de oportunidade. O tempo passou. Podemos ver, agora, que uma boa parte do risco se confirmou, se materializou. Ainda não perdemos a nossa identidade, mas alguns dos centros de decisão de que dispúnhamos já não nos pertencem. Todavia, é no balanço de tudo quanto aconteceu que deve ser procurado o resultado fiinal da nossa integração na Europa. Surpreendentemente - ou talvez não - o que vejo agora tem algo de premonitório. Encontro as vozes mais agudas que discutem a Europa entre os mais velhos. Os jovens, sobretudo os mais conscientes e preocupados com o seu futuro, assumiram já a sua condição de cidadãos europeus. Mais do que de cidadãos portugueses. Com toda a franqueza penso que, dentro de um par de décadas, a maioria dos nossos cidadãos se verá parte da Europa nos precisos termos - ou quase - como um californiano se vê americano. Cabe-nos, aos mais velhos, tentar preservar uma coisa apenas. A nossa Cultura. Na Europa das regiões, cumpre-nos guardar o que a nossa região tem de mais íntimo.
É no plano económico que os riscos - e as oportunidades - são maiores. Os novos países chegam à Europa num estado de desenvolvimento económico mais atrasado. Mas é inegável que trazem algumas vantagens. Muitos dos países aderentes são originários do antigo bloco comunista. Onde se dava importância à preparação técnica, à aprendizagem da função que a cada um cumpria desempenhar na sociedade. Por força da própria natureza do regime, são cidadãos disciplinados. E habituados a ganhar pouco. Não é de todo inesperável que, dentro de pouco tempo, sejam tão reivindicativos quanto os portugueses o são. Não há razão para esperar que a Europa não produza neles o efeito de emulação que produziu nos Portugueses, por exemplo. Assistiremos, provavelmente, dentro em pouco, a ouvir slogans do género "para trabalho igual, salário igual". Lá como cá. Com uma pequena diferença. Com o longo tempo vivido sob a mão de ferro comunista, os sindicatos tenderão a ser menos radicais do que cá. Cá, os sindicatos ainda são comandados pela ideologia que eles acabam de abandonar. O que faz com que, enquanto a geração predominante for aquela que viveu a realidade do comunismo, tendam a privilegiar mais o diálogo social do que fazem os de aqui.
Porque mais bem preparados tecnicamente e menos reivindicantes socialmente, os países novo-aderentes ganham uma competitividade adicional. Mas também devemos esperar que sejam essencialmente as indústrias mais trabalho-intensivas, as que andam sempre à procura de mão de obra barata, aquelas que buscarão aqueles países. Bastará, para que nos defendamos razoavelmente, que procuremos denodadamente encontrar os sectores onde o maior desenvolvimento tecnológico pode fazer a diferença. Nesse sentido, entendo que todos devíamos reflectir nos pensamentos do Professor Cavaco Silva, numa entrevista que, sobre este tema, deu à RTP. Onde ele mostrou, mais uma vez, estar à altura dos desafios enormes que se colocam ao país. Com um pensamento claro, com uma vontade firme. Se os nossos empresários souberem entender o que ele disse, se os trabalhadores conseguirem ver um pouco mais além do que a próxima ponte de fim de semana, então talvez saibamos chegar onde temos o dever e o direito de chegar. Porque as oportunidades são, por outro lado, enormes quanto os riscos. Subitamente, surge-nos sem barreiras nacionais, um mercado equivalente, em termos de consumidores, ao de uma nova Alemanha. Acrescendo que em tais consumidores vai despertar uma fome consumista idêntica, por exemplo, à que se verificou em Portugal. Isto é, para regressar aos parâmetros da nossa anedota inicial e salvaguardando as proporções, "ainda estão todos descalços".
Acresce que temos uma outra razão para estar optimistas. A corrupção tem sido o grande fungo do nosso desenvolvimento. Todavia eliminável. Durante muito tempo pareceu que o mal não tinha solução. Mas os últimos desenvolvimentos vão em sentido contrário. Parece que estamos assistindo ao princípio do fim da corrupção generalizada. Finalmente, houve coragem de entrar nos dois sacrossantos centros da maior parte da corrupção pública, o futebol e as autarquias. A promiscuidade entre os dois recebeu dois golpes violentos no curto espaço de uma semana. E, mesmo que nada mais resultasse disto, algo foi já conseguido. Colocar de prevenção os corruptos. Dar-lhes - e à opinião pública generalizadamente - a noção de que a impunidade não existe, por mais poderoso que se seja. Só falta, agora, que o decurso dos processos seja célere e que, também rapidamente, sejam julgados todos os criminosos e recebam o castigo exemplar que se impõe, em nome de uma sociedade verdadeiramente justa.
Este o quadro que temos, no momento em que a comunidade da qual somos parte recebe mais dez membros. Riscos e oportunidades sem conta nos esperam. Riscos que podem ser confirmados devido a uma atitude despreocupada. Oportunidades que podem ser explorados com uma atitude inteligente, esclarecida, dinâmica, voluntariosa. Por enquanto, confio. Penso que, nos últimos tempos - e não obstante a persistência da crise económica, todavia em desaceleração, o que é um bom sinal - temos tidos algumas razões para confiar.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 5/5/2004
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