AS PERVERSÕES
Imagine o meu Caro Leitor que anda com dificuldades financeiras, não chegando a sua receita anual para fazer face às suas despesas anuais. Provavelmente, não terá dificuldade nenhuma em imaginar isto nos tempos que correm. E imagine que a situação tende mesmo a tornar-se insustentável, com os credores a baterem-lhe à porta ou o seu banco a dizer que lhe empresta mais um bocadinho de dinheiro mas que terá que pagar um juro agiota. A situação parece sem solução. Mas o meu Caro Leitor ainda não pensou numa solução com algo de simples. É que o senhor é proprietário da casa onde vive. Isso é capital, que acumulou ao longo de esforçados anos. Ainda não encarou a solução de vender a casa porque, naturalmente, no seu espírito surge logo uma questão: “E então, se eu vender a casa, para onde é que vou viver?”. Uma falsa questão. Porque há solução. O senhor vai encontrar quem lhe compre a casa, arrendando-a ao mesmo tempo para si. Claro que, no estado em que está o mercado imobiliário, até é capaz de perder dinheiro relativamente ao preço por que a comprou. Mas isso são amendoins. O que importa é encaixar dinheiro que lhe permita o alívio da pressão no orçamento imediato. Uma solução que parece brilhante. Encaixa já o valor da casa e fica a pagar uma renda que, anualmente, será para aí de uns cinco por cento do valor porque a vendeu. Lá se vão as dificuldades por água abaixo. Pode pagar a todos os credores e ainda fica com dinheiro para fazer umas grandes obras na casa, que já não é sua no estrito sentido do termo mas que é sua porque o contrato de arrendamento lhe dá o direito de a ocupar. Que grande ideia teve!
O tempo passa. O seu orçamento anual tem agora mais despesa (a renda da casa). Não faz mal. No banco ainda ficaram umas coroas para ocorrer a esse aumento. Pode bem pagar a renda com elas. Vive feliz. Passa mais tempo. Até que se acabam as coroas no banco, gastas no pagamento da renda da casa. Agora é que é um problema. Tem que começar a endividar-se novamente. Os credores vão de novo começar a bater-lhe à porta. Como já não tem capital, nem o banco, desta vez, lhe emprestará mais algum dinheirito. Até a renda vai deixar de pagar. O senhorio não tem que sustentá-lo. Trata de despejá-lo. E o meu amigo pega nos já poucos tarecos, na família, talvez no cão também, e vai viver para debaixo de uma ponte. É a bancarrota. Comeu o capital lá para trás, no passado e já não tem remédio. A brilhante solução lá atrás não foi solução nenhuma. Lixou-lhe o futuro, sacrificando-o ao imediato. A solução – que o meu Amigo não quis encarar – teria sido reduzir a sua despesa anual até a encaixar na receita que tinha. Não fez isso. Tramou-se.
O Estado, cujo défice anual é presentemente astronómico, anda a vender o património imobiliário que tem e de que ainda precisa, arrendando-o depois. Realizou este ano umas centenas de milhões de euros em transacções assim. Está a ver o que vai acontecer ao Estado, não está? E o problema maior é que o “Estado” é Você, meu Caro Leitor. Andam a dizer-lhe que estão a cuidar do seu futuro, mas estão é a dar cabo dele.
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Foi com um ar de certa candura que aquela mulher do povo sentenciou, frente às câmaras da televisão:
- Não sejam tão pessimistas, que isso do desemprego até nem é mau de todo! Por exemplo, o meu filho Tóne estava empregado e ganhava seiscentos euros por mês. A empresa fechou e ele ficou desempregado. Foi ao Fundo e, agora, ganha só quatrocentos por mês. Mas tem o dia todo livre, pode fazer uns biscates, ganhar mais algum por fora e ainda pode ficar na cama quando lhe apetece. Não tem obrigações nem faz descontos…
Ouvimos e abanamos a cabeça como o burro. Sim senhor. A inocente mulher tem razão. O Tóne tem a melhor situação do mundo. O sustento dele passou a ser pago, não pelo seu trabalho, como seria natural, mas pelo trabalho dos outros, pelos que têm obrigações e fazem descontos. Pelos que sofrem os tormentos da deslocação para o trabalho, picam o ponto, têm que produzir e ainda aturam as más disposições do encarregado. Aqui para nós, meu Caro Leitor, o Tóne é sustentado pelos tontos. Pelos que não têm a coragem de cair no desemprego e de ficar na deliciosa situação do Tóne. Dir-me-á: “Mas não se cai no desemprego quando se quer…”. Não é verdade. Dou-lhe um plano infalível. Logo que saiba de uma empresa que esteja em dificuldades, assim estilo Qimonda, mude-se para lá. Nem que seja de borla. São só uns mesitos à borla. Depois, vai ser um festival. Terá ministros s trabalhar para si. Não resolverão nada mas, no fim, lá vem a situação almejada. Está no desemprego. Está na situação do Tóne.
Eu disse acima que o sustento do filho daquela extremosa e inocente mãe televisiva. Mas isso é feito através do orçamento duma entidade chamada Estado (não esqueça nunca que o “Estado” é Você, meu Caro Leitor). O mesmo Estado que faz aquelas operações de venda e arrendamento simultâneo. Isto é, é mais um peso no prato negativo do Orçamento. Enquanto houver capital para desbaratar, quem administra o Estado ainda pode ir vivendo disso. Mas quando o capital acabar, meu Caro, vai ser o Estado (isto é, Você) a pagar as favas. Quer dizer, quando estiver na bancarrota vai ter que pagar o sustento presente, passado e futuro de todos os Tónes que andam por aí. E também dos Zés que, não estando no desemprego, têm essa sublime criação que é o Rendimento Mínimo Garantido a ajudá-los. Vai ter que pagar isso tudo através de maiores e absurdos impostos. E, antes, ainda terá assistido à redução, até níveis de miséria, das pensões daqueles velhos que, durante toda a sua vida, não foram Tónes nem Zés.
O Estado, dito Social mas que é uma perversão gigantesca e injusta, renunciou a um princípio de justiça social de que foram feitas as sociedades progressistas – não no sentido político-partidário do termo, mas sim no sentido do desenvolvimento do bem-estar dos seus cidadãos – que conhecemos: TODOS, COM EXCEPÇÃO DOS FISICA OU MENTALMENTE INCAPAZES, TÊM QUE PRODUZIR A SUA EXISTÊNCIA. A que título a sociedade tem que sustentar alguém que é física e mentalmente capaz? Porque é que ao subsídio de desemprego não corresponde a obrigação de trabalhar? Com tanta coisa para fazer neste país imperfeito e inacabado em que vivemos, porque é que se dá dinheiro a alguém sem lhe pedir trabalho em troca? Porque é que se SUBSIDIA algo indesejável, como é o DESEMPREGO, e não se SUBSIDIA algo desejável, como é o EMPREGO? O Fundo de Desemprego deveria mudar o nome para Fundo de Emprego e ser uma enorme agência de fornecimento de trabalho a entidades públicas. Gratuito para as entidades e pago, justamente pago, pelo Fundo. E não digo fornecimento a entidades privadas porque tenho muito medo que os empregadores começassem a mandar os seus trabalhadores ao Fundo como desempregados, para os voltar a admitir, por metade do preço, na volta.
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São só duas perversões. Que caíram sob os olhos do meu espírito em dias chegados. Duas de uma montanha de perversões que enfeitam esta Estado de opereta que é o nosso e de que todos vamos falando entre nós. Mas a Democracia, sendo o menos imperfeito de todos os regimes, tem exigências para funcionar. E uma delas é que o meu Caro Leitor se manifeste. Diga em voz alta o que pensa. Fale, clame, grite, pegue num cartaz e vá para a rua. Obrigue quem gere o Estado que Você é em seu nome a fazer aquilo que Você quer. Tenha sempre presente que os políticos – os tais que gerem – não são tolos. Quando perceberem que o Poder lhes fica longínquo se não fizerem o que Você quer, fazem-no. Mas só podem saber o que Você quer se gritar bem alto. Porque, a maior partes das vezes, se não são surdos, parecem-no.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 10/12/2009
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