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11.12.09

MEMÓRIA

POUCO A POUCO

Não me recordo se já contei aqui a fábula seguinte. Mas gosto tanto dela, tenho-a sempre tão presente quando surge qualquer medida nova anunciada por qualquer poder, que nunca me esqueço dela. E, mesmo que a tenha já contado, não faz mal nenhum repeti-la, pelo que de ensinamentos encerra.

Conta-se que, naquele velho convento, era uso servir, por ocasião da ceia de Natal, um delicioso creme, porventura alguma fórmula secreta do frade cozinheiro que com ele se foi para a tumba. O creme era servido numas travessas de alumínio, já bastante amolgadas pela utilização. E, a ornamentar a lauta sobremesa da noite festiva, arrumadas eram, na margem das travessas, umas floritas de plástico, as quais deviam ter sido amarelas na origem mas que, agora, de tanto servidas, eram de cor indefinida, ainda por cima aqui e além incrustadas de restos do creme dos natais passados. Um dia, tendo morrido o frade superior, foi designado pelo bispado um novo frade para ocupar a função. E este, em chegada a ceia de Natal, foi pela cozinha, antes de servido o repasto, para ver se tudo estava em ordem. E ao ver as travessas do creme, enfeitadas como era hábito pelas florinhas um dia amarelas, não gostou da habilidade e mandou que servissem o creme sem as florinhas. Foi servida a refeição, frades alinhados em longas mesas com bancos corridos, encastoadas por uma mesa transversal onde, além do frade superior, tinha assento todo o cabido do velhoengo mosteiro. Por alturas da sobremesa, armou-se grande aranzel lá para o fundo das mesas. Levantando-se do seu lugar e dirigindo-se ao barulho, o frade superior dispunha-se a restabelecer a ordem. Chegado lá, deparou-se-lhe um frade velhinho, porventura o mais velho do colégio, o qual, a plenas pulmões, reclamava pelas florinhas de plástico. O frade superior julgou que o velhote teria ensandecido. E, pacientemente, intentou explicar-lhe que as tinha mandado jogar no lixo porque não passavam de um monte de velha sujidade. Mas nada demovia o velhote. "Quero as minhas florinhas! Quero as minhas florinhas!", gritava ele. Já impaciente, o frade superior berrou-lhe, sem reparar na blasfémia da imprecação: "Ó homem! As flores estavam velhas e sujas! Para que é que você quer o diabo das flores?". E o velhote, pela primeira vez calmo desde que começara a estridência, explicou: "Eu não quero as flores para nada! Eu quero é o creme, de que gosto muito! Mas já sei que se me tiram as flores este ano, para o ano tiram-me o creme!".

É poderosa de ensinamentos, esta fábula. Ensina-nos que a resistência a toda a ofensa que façam aos nossos direitos tem que ser defendida na primeira linha. Designadamente as que venham da parte do Estado. O qual, pela sua impessoalidade e pela tendência que tem para se tornar absolutamente poderoso, é useiro e vezeiro na táctica de ir retirando direitos ou ir impondo novos deveres pouco a pouco, de modo a tornar o menos dolorosa a possível a alteração e, assim, limitar a defesa que dos nossos direitos poderíamos fazer ou a resistência que poderíamos opôr a novas obrigações.

Poderíamos encontrar inúmeros casos em que tal sucedeu. Por exemplo, a contribuição autárquica. Inicialmente fixada com taxas irrisórias, a incidir sobre valores mais irrisórios ainda. A taxa de imposto foi inicialmente fixada entre 0,7% e 1,3%. Nos primeiros um ou dois anos, praticamente todas as autarquias aplicaram a taxa de 0,7%. Mas rapidamente foram subindo, até aplicarem a máxima. Mas como aí esta se tornava inelástica, houve que mudar a Lei, mudar os valores sobre que se aplica a taxa. Para reduzir a resistência, formularam-se novos máximos e mínimos. Inicialmente aplicam-se os mínimos. Não tenho dúvida que, brevemente, já estaremos a pagar pelos máximos.

Um outro exemplo é o do imposto de circulação. Inicialmente lançado para financiar a construção de auto-estradas. Porque não haveríamos de pagá-lo se queríamos modernizar o país? Mas depois surgiu o princípio do utilizador-pagador. Já não fazia sentido estarmos todos a pagar o imposto que financiava a construção. O imposto, em lugar de desaparecer - como seria, se as propostas e iniciativas do Estado obedecessem, como deviam, à configuração de um contrato entre o Estado e os cidadãos - passou a imposto municipal sobre veículos. Deve ser para arranjar caminhos. O que me deixa com alguma esperança. Pode ser que os buracos que tenho na minha rua um dia desapareçam.

Se quisermos um outro exemplo, veja-se como a tendência é para que, um desses dias aí para a frente, a sacralização do princípio do utilizador-pagador nos vai conduzir a que paguemos, na utilização, tudo aquilo que era suposto ser financiado pelos nossos impostos e fornecido gratuitamente pelo Estado. Como, nestes tempos recentes, sucedeu com o avançar da ideia de pagamento dos serviços de saúde e dos transportes colectivos.

Mas não só no domínio do que pagamos se coloca este problema. Também se coloca no domínio das obrigações burocráticas que o Estado nos impõe. Como ainda agora acaba de acontecer com a obrigatoriedade de declaração às Finanças daquilo que pagamos a empregados domésticos. Terminou no último dia 15 deste mês o prazo para entregar, sem multa, a declaração modelo J do IRS, através da qual somos obrigados a fazer aquela declaração.

A primeira pergunta que me ocorre é esta: com que direito quer o Estado saber onde gasto o meu dinheiro cujo gasto não tem qualquer influência na minha área fiscal? E o raciocínio por detrás desta pergunta é o seguinte. O Estado não tem direito nenhum de saber a aplicação legítima que eu faço do meu dinheiro desde que tal gasto não seja por mim invocado para pagar menos impostos. Posso gastá-lo em cervejas ou bombons, posso jogá-lo no totoloto ou no casino, posso dá-lo a um pobre ou pagar a quem me engraxa os sapatos. O Estado não tem nada com isso. Nem tem direito a saber. Isso é comigo. Pertence ao domínio da minha liberdade individual. E tenho mesmo direito a manter sigilosa a aplicação que faça. Se o Estado deduzisse ao meu rendimento tributável a quantia que pago a outrem para ter a capacidade produtiva desse rendimento tributável - tal e qual faz com as empresas - estaria bem. E, mesmo assim, ficaria no meu critério declarar esses montantes, obtendo a correspondente dedução fiscal (porque outrem, quem recebeu o que paguei, se substitui a mim no pagamento respectivo) ou não declarar nada, não obtendo dedução (substituindo-me eu assim à pessoa a quem pago). Uma vez que o Estado não considera para nada, no meu domínio fiscal, o que eu pago ao meu empregado doméstico, não tem que me vir pedir para declarar seja o que for. É que, ao fazê-lo, obriga-me a perder tempo a comprar impressos - custo adicional - e a preenchê-los, para atingir um fim que eu, com os meus impostos, pago: fiscalizar se os cidadãos cumprem as suas obrigações fiscais. Não sou eu que tenho que fiscalizar se o meu empregado doméstico paga ou não o IRS que deve. Já pago impostos ao Estado para que ele faça isso.

Assim, deixo aqui uma ideia para os fautores do próximo Orçamento Geral do Estado. Ou passam a considerar - como deviam - que o que é pago aos trabalhadores domésticos é custo da obtenção do rendimento tributável para quem os emprega e, por isso, dedutível ao meu rendimento. Ou eliminam para sempre essa obrigação de declarar o que se paga aos empregados domésticos. Se o não fizerem, para o ano teremos direito a gritar: "Quero as florinhas! Quero as florinhas!". Que é como quem diz: "Não entrego a declaração! Não entrego a declaração!". Sob pena de, se o não fizermos, dentro em pocuo teremos que empregar um guarda-livros para anotar tudo em que gastamos o nosso dinheiro. Apenas para informar um Estado que nem as suas obrigações mais triviais executa.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 15/9/2004

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