O INFERNO
As imagens entram-nos pela casa dentro sem pedir licença. Sucedem-se, dantescas, impiedosas tenazes da alma a verrumarem o nosso conforto espiritual. Parecem fantasmas os que vagueiam pelas ruas, por entre pedaços de cadáveres a espreitarem das ruínas dos edifícios. A tragédia do Haiti, porque deixou o seu testemunho aos olhos de toda a gente, chega a ser mais impressionante do que o tsunami do extremo oriente, que matou muito mais pessoas e atingiu muitos mais países.
Mas, de entre todas as imagens que foram perpassando ante os meus olhos, como dos olhos de todos, talvez nenhuma tenha despertado tanto as minhas emoções mais íntimas do que a daquela criança que sorria abertamente, no meio da tragédia. Um sorriso provocado pelos dois pacotes de bolachas que os serviços de assistência das Nações Unidas lhe tinham colocado na mão. De súbito, aquela criança parecia transportar entre os dedos o maior tesouro do mundo. Duas ou três dúzias de bolachas chegavam para construir uma felicidade momentânea. E dei por mim a fazer, para mim mesmo, um comentário dilacerante: é preciso estar-se desprovido de tudo, até da mínima esperança, para que dois pacotes de bolacha possam ser o maior tesouro do mundo.
No meio do caos provocado pelo terramoto e da desorganização total a que ele deu origem, foi possível verificar que, como única, frágil e possível ordem, apenas existia a dos capacetes azuis, soldados da ONU. E se é possível encontrar um aspecto positivo no meio do inferno que a natureza decidiu instalar no seio de uma população pobríssima, já varejada por uma história de convulsões sociais e políticas bastante agitada, tal aspecto há-de encontrar-se na solidariedade de praticamente todo o mundo para com o povo haitiano. Ao vê-los, a eles, soldados, envolvidos numa acção humanitária, única réstia de esperança para todo um povo, fica a morder o pensamento a ideia de como este mundo seria muito mais bonito, se a única função dos soldados fosse esta a que assistimos nestes últimos dias. Se eles não fossem chamados tantas vezes para intervir no meio de conflitos armados, nos quais o inferno, em lugar de provocado pela natureza, é devido a nós próprios, ao nosso egoísmo, às nossas ambições, aos nossos ódios e à nossa condição mais animalesca.
Se a tragédia imensa do Haiti e do seu povo não servir para outra coisa, que sirva, ao menos, para que dela tiremos esta lição: já existem demasiadas tragédias naturais na Terra para que sejamos nós a provocar ainda mais.
Magalhães Pinto, em MATOSINHOS HOJE, em 19/1/2010
Sem comentários:
Enviar um comentário