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2.2.11

MEMÓRIA

A ROLETA PORTUGUESA

No meu imaginário, ainda está indelével o gesto que sempre considerei um supremo acto de loucura. Vi-o num filme qualquer da juventude. Li-o num romance de Dostoievsky. Chamavam-lhe a roleta russa. Para alguém que ainda não saiba o que é, o gesto era um combate entre dois contendores. Com uma única arma. Um revólver, no tambor do qual apenas existia uma única bala, cuja localização na ordem de disparo, nenhum dos contendores conhecia. E, sucessiva e alternadamente, cada um dos “malucos” ia apontando a arma à própria cabeça, premindo o gatilho. Se a única bala não estava na culatra, um estalido seco anunciava o adiamento da morte certa. Se a bala estava na culatra, adeus. Era um jogo mortal, de nervos. Mais do que morrer ou ver morrer, cada um dos contendores pretendia ver o outro quebrar, cedendo à pressão e perdendo, assim, a contenda.

Ultimamente, a imagem tem saltado, com frequência, do meu subconsciente, onde se encontrava adormecida, para o meu pensamento quotidiano. Só que já não lhe chamo roleta russa. Chamo-lhe roleta portuguesa. Portugal, os Portugueses, estão a jogar uma imensa e multiplicada roleta portuguesa. Não se apercebem, nem por um momento, de que a “morte” – enquanto país independente, livre, desenvolvido, feliz – está aí para a frente, escondida numa bala cuja localização no tambor dos nossos comportamentos colectivos desconhecemos. A arma é a exacerbação daquilo que julgamos serem os nossos direitos e o envio para o país das malvas do que são, indubitavelmente, os nossos deveres. Se quiséssemos colher um exemplo flagrante do que digo, temos aí o comportamento dos educadores infantis. Em romaria, a exigirem não trabalhar num período em que é suposto o façam. Um exemplo, apenas. Há mais. Muitos mais. E o fenómeno é tanto mais bizarro quanto, provavelmente, a maioria de nós se insurge – como eu estou a fazê-lo agora – contra o comportamento dos outros, mas não deixará de agir identicamente se a capela de interesses atingida for a nossa.

Tal como na roleta russa, a roleta portuguesa transforma-se num jogo de nervos. Apercebemo-nos de que as coisas não estão a seguir o bom caminho. Vivemos os nossos dias em sobressalto. Sentimos que o jogo é perigoso. Muito ao jeito português, procuramos encontrar os “culpados” por estarmos metidos em tal jogo. Acusamos tudo e todos da viciação das regras. Olhamos para o alto. Apontamos o dedo à classe política. Construímos a indestrutível barreira que separa o “eles” do “nós”. Indestrutível e dupla-face. Porque “eles” também também fazem tudo para se separarem de “nós”. Cegos, não vemos que somos todos “nós”. Esse, um problema fulcral da democracia. Ainda em grande parte viciados nas regras de outros tempos, não vemos que a dicotomia desapareceu. Foram “eles” que conduziram o país ao estado de semi-bancarrota que vivemos. Mas somos “nós” quem arca, agora com os custos. Não percebemos que, se temos uma classe política minúscula nos seus objectivos, mesquinha nas suas modernices dos factos políticos inventados e explorados até ao enjoo mas que em nada contribuem para a nossa felicidade colectiva nem para o nosso bem-estar, uma classe política feita de anões a presumir de gigantes, essa classe política somos “nós”. Transformamos o país numa imensa romaria povoada de gigantones, por debaixo dos quais se esconde a nossa verdadeira e reduzida dimensão. Rimos alarvemente do espectáculo, sem medirmos que, nele, somos, simultaneamente, os espectadores e os actores. Sem repararmos que, tal como na fábula, quando as luzes da ribalta se apagarem, ficaremos no degrau corroído do palco, a chorar, feitos palhaços infelizes.

Não sei se temos salvação. Mas estou pessimista. A salvação exigiria uma consciência cívica que ultrapassasse os interesses egoístas momentâneos. Exigiria a compreensão de que a tarefa que realmente vale a pena é a da construção do futuro colectivo. Concentrando-nos no imediato, estamos a comer as migalhas de que seria feito o pão do futuro. A salvação exigiria a mobilização de tudo e todos num projecto nacional comum. Ninguém parece interessado nele. Todos estão concentrados na sua barriga. A crispação vivida pelo país é o mais seguro indicador de que assim é. Ao fim e ao cabo, a crispação resulta do confronto dos vários interesses. Todos afirmamos que nada está bem e todos nos opomos à mudança. Absurdo comportamento esse, que não pretende a mudança do que afirma estar mal! Com toda a franqueza, se é verdade que todos os dias nos trazem razões de queixa da classe política que temos, não é menos verdade que essa classe política tem razões de sobra para se queixar do Povo que tem.

Claro que isto tem remédio. Mas dá muito trabalho. Exigiria o nosso empenhamento cívico. Exigiria a utilização de todas as plataformas de intervenção por cada um de nós. Mas estamos tão absortos na defesa do pequeno milímetro quadrado dos nossos interesses pessoais que nos não sobra tempo para isso. Esperamos sempre que sejam os “outros” a fazê-lo. Olhos fechados pela cegueira que não deixa ver que “os outros” somos “nós”, mais uma vez. Apetece-me pegar num exemplo.

As autarquias estão exangues, tal como acontece com o Estado. Não é só o Governo Central a dizer que não tem dinheiro. Aí estão as Câmaras Municipais e as Juntas de freguesia a dizê-lo também. O seu endividamento, fruto de mil e uma decisões erradas de gestores arranjados à pressa, de mil e uma obras sem impacto real no nosso bem-estar – costumamos chamar-lhes obras de fachada – compromete irremediávelmente o futuro. Como sempre acontece em situações tais, acabada a possibilidade de cobrar mais impostos e exaurida a capacidade para pedir mais dinheiro aos bancos, as autarquias voltam-se para o jogo como potencial fonte de receita. Não há dinheiro? Monte-se um casino! É natural. Para eles, o jogo é um modo insensível de arrecadar mais impostos sem lhes sofrer o custo político. Que se lixem os custos sociais futuros de uma tal decisão. Os jovens nas slot-machines. Porventura a roubar uns euros em casa para o fazer. Os fins de mês sem salário, estourado que foi no jogo. Vivo em Matosinhos. Li nos jornais que o Presidente da minha Câmara reivindicou um casino para Matosinhos. Grito do meu canto que não quero isso na minha cidade. Estulta atitude, a minha. Provavelmente, serei a única voz. As outras ficarão caladas agora. Para virem para a rua berrar, amanhã, quando os custos sociais aparecerem. Quando o mal já não tiver remédio. A bala estava na câmara. Ninguém se apercebeu disso. E deixamos que um Presidente de Câmara pressione o gatilho, alegremente. Para ele, é o mesmo. Quando a bala atingir as têmporas, ele até pode estar retirado já, a gozar as delícias do lar. Como acontece com um Primeiro Ministro de triste memória que nos conduziu para o abismo, perante a desinteressada complacência de todos nós. Aonde pára ele? Desapareceu da circulação. A picareta falante ficou com a ponta rombuda. Já não pica mais. Mas vemos hoje, claramente, como era pôdre a paz social que nos proporcionou.

Continuemos, pois, a jogar alegremente a nossa roleta portuguesa. Mas não julguemos que, tal como na russa, quando a bala nos atingir, vai ser uma morte praticamente indolor. Vai doer a valer!

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 31/9/2002

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