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9.2.11

MEMÓRIA

SPARTACUS

Correu, esta semana, numa das estações de televisão que temos, um velho filme, que fez as delícias da minha juventude. Alimentando os ideais de insubmissão e de liberdade que viriam mais tarde. Spartacus. A história - que foi História - de um gladiador de Roma, que lutou pela liberdade. Sob a sua liderança, os escravos fizeram tremer o que era, então, o mais poderoso império da Terra. Aparentemente, não adiantaram muito. No fim da história, os disciplinados exércitos do Império derrotaram o mal equipado exército dos escravos. E a maior parte destes morreu no combate final. Mas, se tivermos em conta que o fenómeno Spartacus aconteceu um escasso século antes do nascimento de Jesus Cristo, o qual, com a sua doutrina, viria, ele sim, a derrotar a velha Roma, talvez sejamos forçados a reflectir um pouco e a perguntar-nos se os dois fenómenos - a revolta dos escravos e o cristianismo - não estiveram relacionados. E se um não terá sido o percursor do outro. Estou, naturalmente, a reflectir em termos de História, deixando de lado qualquer explicação metafísica.

Historicamente, o desejo de Spartacus era o de abandonar Roma, procurando refúgio e a liberdade em terras não controladas pelos Romanos. Mas as intrigas políticas, por um lado, e a ambição desmedida de muitos dos seus homens, até então escravos como ele, forçaram a que o objectivo inicial fosse transformado no derrube do regime romano. Aparentemente, não se entende muito bem porque é que Roma não deixou apenas que os escravos fugissem. A grave crise política, que se seguiu ao episódio e que viria a terminar em ditadura naquilo que era uma exemplar (do ponto de vista político) república, é demonstrativa de que, aparentemente, melhor fora aos Romanos permitir a dita fuga. Mas só aparentemente. A economia e a sociedade romanas estavam baseadas em duas premissas essenciais. O espólio e tributos vindos das terras conquistadas e o trabalho escravo. Permitir a fuga dos escravos era abalar os fundamentos da sociedade e da economia romanas. No fim, com a derrota dos escravos e milhares - cerca de 6.000 - de cadáveres a ladear a Via Ápia - ao que se disse, para servir de exemplo - apenas terá ficado um momento de brilho. Durante o tempo que durou a revolta dos escravos, milhares de pessoas tiveram a ilusória sensação de viver em liberdade.

Insensivelmente, dei por mim a pensar que, hoje em dia, continuamos todos a ser Spartacus. Uma legião imensa de Spartacus. Não já submetidos ao poder de qualquer Júlio César, mas subjugados pelo poder asfixiante de um Estado omnipotente, omnipresente e, pelo menos assim se pretende a si próprio, omnisciente. Para esse Estado, e tal como os escravos para Roma, não passamos do factor económico da sua sobrevivência. Sem Spartacus, a trabalhar denodamente para angariar a sua subsistência, da qual têm que entregar ao senhor todo-poderoso, o Estado, uma boa fatia, o senhor não sobreviria. E, tal como os Spartacus daquele tempo, temos a ilusória, mas passageira, ilusão de que vivemos em liberdade. Uma ilusão que morre logo que a velhice chega e damos conta de que o Estado deixou de se interessar por nós. Nessa altura, já nem os leões da arena se interessam. Com alguma razão, devem pensar que nem os ossos se nos aproveitam. Nessa altura, chegou a nossa Via Ápia. Ali restaremos, feitos cadáveres adiados. Tal e qual como os escravos crucificados. Tanto mais dignos de comiseração quanto nem sequer serviremos de exmplo para os demais.

Mas há mais paralelismos. Roma era uma massa imensa de gente sem vontade e sem querer. A vontade e o querer de Roma dependiam da decisão de umas centenas de homens no Senado, de uns tantos imperadores e de um exército disciplinado ao serviço daqueles. Dessa meia dúzia dependeu o futuro de Spartacus. Foi essa meia dúzia que Spartacus ameaçou com o seu gládio. Também a vida dos Spartacus de hoje depende de meia dúzia de vontades. E, também como então, temos na mão o gládio que os ameaça. Chama-se voto. Um gládio que ameaça os senhores da vontade do Estado. Uma vontade só eufemisticamente dita que está na nossa mão, enquanto tal gládio não for utilizado com sabedoria, com inteligência. Têm, todos os Spartacus actuais, uma vantagem em relação aos daquele tempo. É que nunca nenhuma batalha é, hoje, decisiva. Sempre há novas batalhas. Sempre há novas oportunidades para usar o gládio de que dispomos. Tendo em conta que aquilo que foi antigamente apenas uma cidade, como Roma, tende a transformar-se num grande império, como aquela se transformou. Só que hoje se chama Europa.

Foram iniciadas as primeiras escaramuças tendo em vista as eleições europeias. Uns querem fazer-nos crer que não está o Império em discussão. Que, do que se trata nestas eleições, é de olhar para o nosso prato de lentilhas e ver se ele está mais ou menos cheio. Outros, procuram fazer-nos esquecer o prato de lentilhas e levando-nos a acreditar que apenas o Império está em discussão. Com o devido respeito, permito-me discordar de uns e de outros. É que o Império é indissociável do prato de lentilhas e este indissociável do Império. O gládio tem que ser usado tendo ambos presentes. De que servirá o Império se continuarmos a ser todos Spartacus? E de que servirá sermos Spartacus, perdidos no emaranhado imenso das intrigas políticas, das traições, das decisões cegas dos governantes do Império?

É compreensível a desilusão que grassa nas hostes dos Spartacus. Já tantas batalhas travaram e não vêm a sorte da guerra modificar-se. Usaram as mais diversas tácticas, sem resultados visíveis. O que coloca aquela que pode ser sempre a última interrogação: de que vale a pena lutar? O senhor todo-poderoso, o Estado, acaba sempre por se escapulir das batalhas praticamente indemne. E nunca mais abandonamos a condição de escravos! Talvez seja o momento de os Spartacus usarem uma nova táctica. Recusarem a batalha. Serem eles a fugir à luta. Obrigando os senhores do Estado a lutarem contra um exército de fantasmas. Creio que nada os assustará tanto como a fuga dos Spartacus à luta. Talvez consigamos, com isso, dizer-lhes: vocês não prestam. Dar luta a um adversário é considerá-lo digno dessa luta. Recusar-lha é considerá-lo indigno dela. Se não conseguimos dizer-lhes, usando o gládio, que o regime está mal ou que, se está bem, eles são maus intérpretes desse regime, baixar o gládio será uma poderosa acusação. Através dela, talvez consigamos fazê-los entender que, por definição, o Estado são as pessoas. E que não vale a pena existir Estado se não tiver as pessoas por fim último do seu agir. Num silogismo de extrema facilidade, o Estado são as pessoas e se as pessoas não têm vida digna, o Estado não é digno. E, não sendo digno, não tem razão de existir. E, não tendo razão de existir, não merece o combate dos Spartacus.

Você, meu Caro Leitor, saberá, bem lá no fundo da sua consciência, se é um Spartacus ou não. E, em função dessa consciência, qual a atitude a adoptar. Se prefere morrer crucificado - como aconteceu ao herói da História - ou se prefere usar (ou não usar) o seu gládio com saber, com inteligência, com oportunidade. Contribuindo, em mais um combate, para que o senhor poderoso dos dias que correm se torne mais justo, mais humano.

Magalhães PInto, em VIDA ECONÓMICA, EM 31/2/2004

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