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14.8.09

REQUIEM


REQUIEM

Aquela frase, na sua nudez, disse mais do que milhões de discursos de circunstância, do que milhões de artigos inflamados, do que centos de manifestações de rua. Foi cortante como o frio polar. Dura, na sua aparente ternura. Um grito de desespero que ninguém parece ouvir. Mortalha para um país apodrecido. Requiem da esperança nascida numa madrugada de Abril.

Quem pronunciou aquela frase não pode ser considerado um fascista. Não é violento, apesar da extrema violência do que disse. Não é saudosista, apesar da saudade. Trabalha. Por conta de outrem. De riqueza, para além da que tem na alma, é chapa ganha chapa batida. Teve esperança como os demais. É mãe. Apenas quer, para os seus filhos, a tranqulidade do amanhã. Uma tranquilidade que a sociedade na qual teve a desdita de nascer lhe está a negar. Chamar fascista àquela senhora seria uma das mais abjectas expressões de cegueira a que se poderia assistir.

Foi na TV. Discutiam - uma vez mais - a legião de desempregados que vagueia aí pelos anúncios, sempre escassos estes para tantos vagueantes. Com particular acento nos desempregados licenciados pelas faculdades inúteis que vamos sustentando. O locutor ia entrevistando gente a esmo. De repente, uma mãe. Olhos meio baços da tristeza. Ombros descaídos de quem se sente impotente perante a força bruta de uma sociedade injusta. Lábios a tremer. Dando conta da quase impossibilidade de encontrar um trabalho para o filho. O qual já não era, propriamente, um recém licenciado. Era já, e apenas, um licenciado jovem. A certa altura, dos lábios trementes, sai a frase. Meio envergonhada. Porque ainda há quem tenha vergonha do que vai acontecendo. Porque ainda há quem tenha vergonha de reconhecer a podridão. Porque ainda há pejo de, numa sociedade que se diz livre, dizer que a liberdade pode significar sofrimento mais duro do que o causado pela maior das ditaduras.

"EU NÃO SEI SE TENHO SAUDADES DO TEMPO EM QUE A ÚNICA PREOCUPAÇÃO DOS PAIS ERA SABER SE OS SEUS FILHOS IAM PARA A GUERRA OU NÃO!".

Eu não sei se algum político ouviu a senhora. Porventura não. Foi à hora em que se janta nos restaurantes de luxo da capital. E restaurante de luxo não tem televisão. Muito menos lhe escancara as goelas. Restaurante de luxo é para confabular intrigas, é para arquitectar planos, é para gerir negócios luxuosos, é para combinar adultérios. Não é para ouvir falar dos dramas que se vão acumulando por esse país fora. Não é para sentir o pulsar, cada vez mais débil, do coração do país. Não é para acumular decepções, para acentuar preocupações, para encontrar soluções. Num restaurante de luxo, a refeição não pode ser indigesta. E, no entanto, se eu fosse político, ficaria extremamente preocupado com aquilo que aquela senhora disse. Subitamente, eu perceberia que era um mal maior do que a guerra colonial. Subitamente, eu entenderia que tinha sido - eu e os outros como eu - um assassino da esperança nascida numa madrugada já longínqua. A pior espécie de assassinos, os da esperança. Porque, sem esperança, somos condenados a morrer permanecendo vivos. Se eu fosse um político e ouvisse o que aquela senhora disse, suicidar-me-ia, provavelmente. O país ficava órfão. De ninguém. Quem não tem pai não lhe sente a falta.

Crónica de Magalhães Pinto em MATOSINHOS HOJE, em 9/3/2004

1 comentário:

GP disse...

Eu não ouvi a senhora mas faço minhas as suas palavras. O 25 de Abril terminou a 26...

Beijo