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8.10.09

CRÓNICA DA SEMANA - II

A RIQUEZA E A POBREZA


Creio que por pura coincidência, o periódico falava das duas coisas. Por um lado, das eleições autárquicas e, por outro lado, da pobreza envergonhada. E, no fim, quem ficou envergonhado fui eu. A coexistência da desvergonha rica dos políticos com a vergonha pobre de gente anónima - ou que quer continuar anónima - é um peso de que me não liberto, mesmo sabendo que a culpa não é só minha. É de todos nós, cidadãos, que não usamos a capacidade reivindicativa, que temos, para colocar um ponto final nas duas coisas.

Portugal tem, se os dados a que recorri estão certos, 307 municípios e 4.257 freguesias. A tradução disto em candidatos aos respectivos órgãos – câmaras, assembleias municipais, juntas de freguesia e assembleias de freguesia – temos muitas dezenas de milhar de pessoas ocupadas a não fazer nada – para não referir que estão ocupadas em dizer baboseiras – durante duas semanas. Os candidatos às eleições têm direito a não trabalhar enquanto dura a campanha. No fim, são eleitas, bem à-vontade, umas três ou quatro dezenas de milhar. Cuja actividade, durante quatro anos, o Estado vai ter que pagar. A uns, com salário fixo. A outros, com senhas de presença. Um sorvedouro de euros que não cessa nunca de sugar. E, quem por ali passou, como eu, fica com a noção nítida de que o trabalho feito seria o mesmo com uma fracção pequena dos eleitos. Acredito que seja para sustentar esta máquina política administrativa infernal que os cadernos eleitorais não são actualizados. Cada freguesia tem interesse em não cortar ninguém dos cadernos eleitorais, nem mesmo os mortos, porque o dinheiro que recebe para as suas actividades e o número de funcionários políticos respectivos permitidos são proporcionais ao número de inscritos nos respectivos cadernos. As consequências são as conhecidas, avultando a de, depois, termos taxas de abstenção nas eleições que são tudo menos reais.

Conhecemos o esforço que os governos vêm fazendo para reduzir o número de funcionários públicos. Porventura, nem o estão conseguindo ao ritmo que seria desejável e exigido pela contenção das despesas com pessoal no Orçamento Geral do Estado. E devemos aplaudir esse esforço. Mas uns momentos de reflexão chegam para fazer surgir uma interrogação crucial: porque é que os políticos, que também são os administradores da coisa pública, não fazem idêntico esforço para reduzir o pessoal político que um “paízeco” como Portugal tem ao seu serviço? Uma questão que se torna dolorosa quando, logo a seguir, não se encontra outra explicação do que a de conseguir trabalho fácil para as clientelas partidárias. Donde ressalta a tremenda insensibilidade e a insofismável hipocrisia de quem nos governa a todos os escalões.

Este fenómeno vai fazer contraste com outra notícia que acompanhava esta. É que há gente com vergonha. Gente que não vai para político. Gente que se viu privada de trabalho e cujo período de apoio do Estado, através do subsídio de desemprego, já terminou. Gente que prefere passar fome do que fazer-se notar por não ter meios de subsistência. Gente decente que nunca imaginou ver-se reduzida à indigência. Gente incapaz de pedir esmola ou de engendrar artifícios para sugar do Orçamento mais alguns cobres. Gente de quem os políticos não se lembra. E é esta gente que a Caritas Portuguesa decidiu, em boa hora, apoiar. Apoios que serão sempre escassos face às necessidades. Mas que cobrirão, pelo menos, as necessidades mais essenciais. É um gesto próprio da Igreja Católica, este. Mas é um gesto que talvez devesse ser substituído por uma reivindicação forte duma instituição forte - como é a Igreja Católica – no sentido de despertar os políticos do seu sono endinheirado.

Se quisermos levar este sentimento mais adiante, basta-nos dar uma vista de olhos pelos subsídios distribuídos pelo Estado. E pelo modo mais ou menos cego como o faz. Não faltam acusações à injustiça de muito do rendimento mínimo garantido. Digam-me com franqueza: dar duzentos euros a cada bebé recém-nascido (a usar dezoito anos depois do seu nascimento) alivia a vergonha de ter concidadãos nossos a passar fome e, mais do que isso, a terem vergonha de o confessar publicamente? E podemos nós censurar a vergonha daqueles cujo objectivo foi sempre o auto sustento, sem ajudas de ninguém e que não querem confessar o seu insucesso sem culpa?

Portugal precisa de uma grande barrela. E peço desculpas aos portugueses que me lêem por associar esse nome que nos é caro – Portugal - à classe política. Não temos qualquer hipótese como nação, como comunidade unida, como agrupamento verdadeiramente humano, enquanto não reformularmos o modo como politicamente funcionamos. Tenham lá paciência, mas não consigo calar este grito que me vai na alma: tenho vergonha da minha democracia! Tenho vergonha de pensar, sequer, que me vou dirigir à mesa de voto e colocar uma cruz à frente de um qualquer nome, o qual pode traduzir uma boa pessoa que pertence a um grupo execrando. Tenho não só a minha vergonha mas também a dos pobres envergonhados. Tenho vergonha da riqueza dos políticos que gerem o meu, o seu, o nosso dinheiro deste modo tão injusto. Esta democracia é pior do que o Feudalismo. Neste, o Senhor ficava com a melhor parte, mas assegurava protecção e sobrevivência aos seus súbditos. Agora, os que se lhe substituíram ficam com a melhor parte mas estão-se nas tintas para o resto.

E são essas minhas vergonhas que acabarão por me afastar das mesas de voto. E como eu, tal sucederá com muitos mais portugueses. Se calhar, é uma evolução desejável, esta. É que, com o tempo, pode ser que só vão às mesas de voto as tais clientelas. Mas, se isso sucedesse, ou se suceder, estarão irremediavelmente perdidos. Porque o pouco respeito dos cidadãos que, não obstante, ainda vão tendo, terá inexoravelmente desaparecido. Tal como sucedeu com a nobreza que se perdeu pelos idos de 1789, ali para os lados da França.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 8/10/2009

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