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14.1.10

CRÓNICA DA SEMANA - II

OS MALEDICENTES

Era como o destino. O conteúdo das escutas telefónicas do senhor Armando Vara, ilustre administrador auto-suspenso do Banco Comercial Português, havia de surgir na praça pública. E, para já, só surgiram as conversas com o sucateiro Godinho, o tal preso preventivo por suspeitas graves de corrupção activa. Não desanimemos. É bastante provável que também cheguem ao vazadouro da má-língua as conversas do mesmo senhor com o senhor José Sócrates. Antes que me acusem de ser mal-criado, esclareço que sei perfeitamente que ambos os dois – perdoe-se o plebeísmo – são senhores licenciados. Mas estou a ponto de jurar que as conversas que ambos mantiveram entre si não foi nas mais qualificadas naturezas que assumem na vida. Foi o próprio senhor Sócrates que o afirmou com todas as letras. Tem horas em que é Primeiro-Ministro. Tem horas em que é Secretário-Geral. Deve ter horas em que é um cidadão humilde e desconhecido como a maioria de nós. E o mesmo se passa com o senhor Vara. Tem horas em que é administrador. Tem horas em que é camarada. E só não terá horas em que é um humilde cidadão porque deu aso a dar muito nas vistas. Hoje o meu vocabulário está muito repetitivo. Mas, que querem, há ocasiões em que a gente não encontra palavras para se exprimir.

Como o resto das pessoas em Portugal, eu não sei se o senhor Vara alinhou em algum esquema de corrupção ou não. Tenho mesmo o dever de considerar que ele não fez isso até se provar que o fez. E, por isso, tenho o dever de esperar pela prova ou respectiva inexistência. Razão pela qual entendo que o burburinho que por aí vai só existe porque somos um país de maledicentes. A começar pela polícia. Que vê gatunos onde só existe gente caridosa a dar tudo o que tem. Como o senhor Vara, por exemplo. Um modelo de gestor bancário. Desde os tempos transmontanos. Uma dedicação à actividade financeira. Não há dinheiro de que ele não cuide bem. Um amor para os clientes. Não só pelo cuidado que coloca na gestão dos respectivos dinheiros mas também pelos serviços que lhes presta. Abrir portas, por exemplo. E reparem na humildade do senhor. Apesar de, nominalmente e na actualidade, ser vice-presidente duma poderosa instituição bancária, não se importa de desempenhar as funções de porteiro. Talvez por isso é que um ou outro cliente lhe manda umas recordações a casa, em sinal de agradecimento. Pequenas coisas sem valor. Dotadas de valor simbólico apenas. Aliás, alguns dão prova de uma atroz ingratidão e de falta de noção das conveniências. Como o sucateiro Godinho, por exemplo. Confessou o senhor Vara que a única coisa que aquele lhe ofereceu foram os robalos. E disse a polícia que viu o dito Godinho a entregar ao senhor Vara um saco num parque de estacionamento, admitindo, a polícia, que fosse um saco de notas do Banco de Portugal. Então não se está mesmo a ver que o saco conteria, provavelmente, os robalos? Pois. Podiam estragar-se. Primeira inconveniência do Godinho. Com o horário de trabalho de administradores de banco dedicados como o senhor Vara, o mais provável é que acabassem por estragar-se. A não ser que estivesse à sombra. O carro do senhor Vara, não este. Eu não sei quantos robalos teria a saca. Mas temos de confessar que, se tinha para aí uma dúzia deles, então o tal Godinho é um mal-agradecido. No mínimo, teria que ser uma salva de prata ou algo assim. Razão pela qual entendo que, neste episódio, se se pode ser maledicente é com o Godinho por objecto, nunca o senhor Vara. O homem de Aveiro só percebe de sucatas, pelos vistos.

De sucatas e de atletismo, soube-se agora. Porque, numa conversa telefónica com o senhor Vara, perguntou a este se queria de imediato os “25 quilómetros”. Vai a polícia e grita: “É pá! São 25.000 euros que o tipo está a querer dar-lhe!”. Outra vez a maledicência. Em primeiro lugar, porque alguém que oferece uma dúzia de robalos numa saca de plástico nunca daria, de mão beijada, uns cinco mil contitos a alguém, só porque esse alguém lhe abria uma porta qualquer. Por mais enferrujada que estivessem as respectivas dobradiças. Em segundo lugar porque, tanto quanto se sabe, o Godinho não é poliglota e não ia chamar “quilómetros” a algo a que costumava chamar “documentos”. Como a sua secretária pode testemunhar. Felizmente, temos a defesa do senhor Vara que nos explica tudo. Com base no calão das docas de Alcântara. Onde “um quilómetro” são “dez mil euros”. Eu sei que há aqui uma coisa ininteligível. Pelo menos aparentemente. É que é preciso ser bom em matemática para fazer uma equivalência assim. Lá trocar “um euro” por “um metro”, isso é coisa de meninos. Agora UM metro igual a DEZ euros já requer contabilidade. Mas, se calhar, isso são já efeitos da distribuição do computador “Magalhães”. Adiante. E, prossegue a defesa, o que o senhor Godinho perguntava ao senhor Vara era “se queria que ele, Godinho, depositasse 250 mil euros no banco” que aquele administrava. Que é uma coisa que todos nós costumamos fazer. Perguntar ao nosso gestor de conta mais ou menos isto: “Recebi hoje o ordenado. Quer que o deposite já na minha conta ou prefere que eu só o faça para a semana?”.

Não faltou logo que aparecesse um maledicente qualquer a afirmar que isso era estória da defesa. Admitamos, só para satisfazer o Descartes, que até duvidamos da estória. Mesmo assim, não vejo porque havemos de ser más-línguas e começar logo a ver minhocas – podem ser notas de euro enroladas – aonde pode estar um ingénuo convite para uma meia maratona. Feita à beira-mar, ao pôr-do-sol, numa praia qualquer, se preferível aonde vendam robalos. Porque diabo havemos de ser tão maldosos e logo presumir que há marosca? A maior parte de nós é preguiçosa. E não cuida da forma física. Mas olhem para a carreira do senhor Vara. Vejam o seu sucesso. Acreditam que tal era possível sem o homem ser que um dedicado praticante de todas as ginásticas?

Portanto, vamos lá ser honestos. E mais. Não há mais razão para esconder as escutas telefónicas. Porque são a prova da mais pura inocência. E porque, quanto mais as conhecemos, mais nos apercebemos da grandiosa cabala que os maledicentes do nosso país andam a querer montar. Atingindo um homem sério, que é um exemplo de servidão. A única coisa que eu não acho bem é que seja administrador de um banco - onde muitos de nós têm dinheiro - alguém que anda a receber robalos dos clientes, que vai com eles fazer maratonas e que usa, nas suas conversas com algum ou alguns deles, calão das docas. Embora, se pensarmos no sacrifício que é fazer uma maratona, mesmo só meia, até achemos que o chorudo salário do administrador que não trabalha é bem ganho.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 14/1/2010

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