EMBRIAGUEZ
O novo ano começa como terminou o anterior. Nem outra coisa seria de esperar. As fronteiras do calendário não são fronteiras da Vida. Nem da morte. E começamos o novo ano um pouco como temos vivido ultimamente. Navegando na fronteira entre a esperança e o desespero. Pessoalmente, quero embarcar no primeiro daquele sentimentos. Mas não consigo. É como se não me vendessem o bilhete. Acho que a Terra está bêbeda. Acho que o Mundo está bêbedo. E acho mesmo que Portugal já entrou em coma alcoólico. Quero digerir todos os acontecimentos que me entram pelo espírito dentro. E sinto-me impotente, arrastado por eles, esbracejando inutilmente, como se todos juntos fossem um imenso tsunami.
É curioso. Há quinze dias, poderiam contar-se pelos dedos as pessoas que, se se lhes perguntasse, saberiam dizer o que é isto, um tsunami. Creio que, hoje, poucas pessoas haverá no Mundo que o não saibam. À míngua da educação que havíamos de dar-nos, a natureza encarrega-se de nos educar. As forças que não podemos controlar encarregam-se de nos reduzir à nossa verdadeira dimensão. Encarregam-se de nos mostrar como somos átomos no seio do Universo, no conjunto da humanidade, no anonimato das multidões. Que pena ser necessário o aparecimento de tragédias como a que a Humanidade acaba de viver para percebermos que só há uma via para sobrevivermos, a da solidariedade. Creio que o mesmo pensamento ocorreu ao Senhor Presidente da República, já eu tinha escrito este. Foi mais ou menos isso que ele disse - com mais clareza e com menos filosofia - no seu discurso de Ano Novo. Ou juntamos as mãos - nós cidadãos, nós comunidade, nós Partidos, nós Portugueses - ou estamos condenados a ser mastigados, digeridos, excretados como aquilo em que nos tornaremos: uma excrescência.
As lições que podemos retirar dos trágicos acontecimentos do Sudoeste asiático são incontáveis. E mostram, até à saciedade, o modo errado como o nosso mundo vai sendo administrado. É óbvio, melhor, devia ser óbvio que o objectivo primeiro da actividade colectiva deve ser a segurança de todos. Segurança entendida em sentido lato. Comer, abrigar, sobreviver. Confrange ver que é mais fácil colocar, com precisão matemática, uma nave no espaço sideral do que prevenir milhões de pessoas, com duas horas de antecedência, de que vem aí um desastre. Os terramotos não são previsíveis. Mas os tsunamis não só são previsíveis como são visíveis. Este também o foi. Num esfregar de olhos, posso saber tudo que está a acontecer no mundo. Menos os desastres, pelos vistos. Isto ultrapassa a nossa compreensão humana. Não é apenas a Terra e o Mundo que estão bêbedos. Os homens também estão. Milhões de pessoas sofrem agora, na carne, os efeitos dessa bebedeira. E mais de uma centena de milhar não os sofre porque, para esses, a viagem terminou.
É difícil ser rigoroso na apreciação da Embaixada Portuguesa em Bangkok. Afinal, o Embaixador fez aquilo que a generalidade dos nossos emigrantes faz. Veio à terra por ocasião do Natal. Também é difícil criticá-lo por, durante quarenta e oito horas, não se ter apercebido da gravidade da situação. Afinal, fez aquilo que todos nós fazemos. Só gritamos por Santa Bárbara quando já chovem raios e coriscos. O Embaixador é "só" português. Mas, sendo difícil criticá-lo, o sucedido mostra bem até que ponto as pessoas têm do seu dever uma noção lassa, rotineira, sem procurarem sempre fazer o seu melhor. Se virmos bem, a atitude do Embaixador não é muito diferente da dos restantes trabalhadores portugueses que, há não muito tempo, quase fizeram uma revolução pelo facto de alguém determinar que se trabalhasse na terça-feira de Carnaval. Ou das que deliram quando fazem uma ponte. Ou das que estão seguramente muito satisfeitas porque, em 2005, vão ter quase meio ano de descanso (146 dias para ser exacto). Quem é que, agindo deste modo, tem coragem de atacar o comportamento do Embaixador?
É compreensível o desespero dos sobreviventes pela eventual falta de atenção de quem quer que seja para consigo. Nem consigo imaginar o que é o rescaldo para quem viveu uma situação de tamanha tragédia. Uma loucura, um tormento, seguramente. Mas creio que todos eles se esqueceram, se é que aprenderam, as lições da História. Se ainda se recordassem do aprendido, saberiam que um personagem da nossa História, que viveu, na condição de poderoso, uma situação idêntica - o terramoto de Lisboa de 1 de Novembro de 1755, seguido de maremoto foi, até ao aparecimento deste do Sudoeste asiático, a quarta maior tragédia do género na História da Humanidade - ficou também célebre por uma frase, ainda perfeitamente aplicável à situação actual. Disse esse personagem: "primeiro enterremos os mortos; depois cuidemos dos vivos". O Marquês de Pombal, com todos os seus defeitos, foi um homem muito inteligente. Pode muito bem acontecer, desta vez, que a tragédia aumente em termos inimagináveis pelo facto de, fosse pelo que fosse, os mortos não terem sido imediatamente enterrados. Esperemos que assim não seja. Mas a ameaça está aí. E não há egoismos pessoais que justifiquem qualquer agressão àqueles cuja primeira preocupação foi tratar dos mortos.
É impressionante o movimento de solidariedade para com as populações atingidas. Um fenómeno que é, simultâneamente, uma razão de esperança e uma razão de desespero. Esperança porque, de repente, nos colocamos todos de mãos dadas, ombro a ombro, a trabalhar para minorar o mal alheio. Mas é também ao vermos este gigantesco movimento de solidariedade que nos apercebemos de como o nosso Mundo seria muito mais aprazível se não fossem necessárias desgraças gigantescas para que assim fôssemos todos os dias. Como indivíduos, sentimo-nos pequenos, frágeis, impotentes perante as forças da natureza, perante as forças sociais, perante a marcha dos acontecimentos físicos e morais. Depois, inseridos na massa imensa da gente a que nos juntamos, perdemos a noção do que somos como indivíduos e deixamo-nos levar pelo rio das multidões, como se este fosse um tsunami. Enquanto tudo corre bem, esquecemo-nos de exigir a quem tem poder que o cumpra na utilidade dos cidadãos. Depois, começamos a chamar-lhes nomes por não o terem feito. Eu não quero ficar com remorsos num dia qualquer do futuro. E por isso é que grito, daqui deste meu canto. Não quero mais estradas. Não quero mais palácios. Não quero mais monumentos. Não quero mais inaugurações. Não quero mais lançamentos de primeiras pedras. Não quero mais Euros/2004. Não quero mais Casa da Música. Não quero mais catedrais. Não quero mais rotundas. Não quero mais nada disso enquanto houver gente em perigo. Enquanto houver gente sem abrigo. Enquanto houver gente com fome de pão e sede de justiça. Emquanto houver gente sem trabalho. Enquanto houver crianças na rua. Enquanto houver velhos desamparados. E se os políticos, perdidos na chafurdice dos seus interesses comezinhos e partidários, gastarem o seu tempo em guerras que nada nos dizem, em lugar de nos servirem, quero varrê-los da minha vista com a violência de um tsunami.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 1/1/2005
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