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28.4.08

OS HERÓIS E O MEDO - 246º. fascículo

(continuação)

Alquebrado, o homem da guarita rouquejava. Água… água… Mário hesitou. Não era nada com ele, pensou. A guerra tresandava a merda e o melhor era proteger-se. Ou ainda ia acontecer ficar ele a cheirar mal. Se o homem estava ali assim, exposto à porta de armas, por alguma razão seria. Talvez para servir de exemplo. Alguém se encarregaria de levar até aos guerrilheiros a descrição do tratamento reservado se não caíssem no campo de batalha ou não viessem, arrependidos, acolher-se à protecção dos brancos. Mas ainda era cedo para terem desaparecido, em Mário, todos os laivos de humanidade. A guerra ainda não destruíra tudo. Foi à messe e trouxe uma garrafa de água e um copo de alumínio. Voltou à guarita. Encheu um copo com água e estendeu-a ao despojo humano. Este passou a língua pelos lábios ressequidos. Mário aproximou-se dele para lhe chegar o copo aos lábios mais facilmente. Encontrando não se sabe que força nos músculos desfeitos, o prisioneiro levantou uma das pernas, num pontapé violento dirigido ao baixo-ventre de Mário. Este esquivou-se, entornando a água na terra. Esta, sequiosa também, engoliu-a num ápice. O ódio vestido de pálpebras inchadas, enfeitado de raios de sangue, fixou-se em Mário. E as palavras jorraram, num português arrevesado, embrulhadas numa repulsa racial inculcada em séculos a fio de injustiça e repressão. Branco bandido… branco maldito… sabe quanto branco mim já matar?… vinte e um… mim estar preso, mas outros vai matar a tu, branco… Tu vai morrer como vaca que tu matar em Mansabá…. Tu vai morrer no Chão de Papel, branco…

(continua)
Magalhães Pinto

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