(continuação)
Aniversários são aniversários e impõem discursos. António Soveral gostava de falar. Gostava de falar com os seus homens. Acreditava poder conduzi-los à superação através da palavra. Não perderia mais aquela oportunidade. Depois da sobremesa, engalanada por bolos caseiros oferecidos pela população civil, e de megafone na mão, fez mais uma das suas prelecções. Desta vez, acentuando o serviço às populações e abandonando as ideias do patriotismo. Já não era tempo para isso. As circunstâncias da guerra, a dureza daquele ano vivido, tornara os homens pouco sensíveis a ideais.
Como eu te entendo, António! Como se pode ser sensível aos ideais depois dos horrores da aniquilação? O patriotismo ficou feito em pedaços, num braço aqui, numa perna acolá, nas tripas ao léu, no amigo morto depois de uma noite a jogar as cartas comigo, no negro assado numa manhã, bem cedo, despontava a aurora. O patriotismo esvaiu-se através dos buracos feitos pelas balas, voou no estrondo da mina calcada, feito em pedaços na granada estoirada mesmo ao nosso lado. Como eu te entendo, António. E pedes-me para ser gentil?! Como me podes pedir para construir casas para eles, que lhes dê boleia, que os cure das doenças? Não vês o absurdo? Isto é uma guerra, António. Absurda, mas é uma guerra. Não estamos a brincar aos cóbois. Ou estamos? Posso dar uma boleia de manhã ao homem que, à noite, planta a mina destinada a arrancar-me o pé. Não vês o absurdo disto, António? Vamos ser vencidos por esta contradição. Por esta e por todas as demais. Não se pode ser meigo numa guerra, António. Ou aniquilo ou sou aniquilado. Não há terceira hipótese, António. Olha o prisioneiro que o Xerifo matou. Nem nos estertores da morte aceitou a minha ajuda. Como queres vencer com meiguice quem tem uma coragem assim? Sabes que mais? O que eu quero é que passem depressa estes mais de trezentos dias que me faltam. Tenho que me proteger, António, senão ainda me matas!…
(continua)
Magalhães Pinto
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