INIQUIDADE
Não sei mesmo se inconstitucionalidade. Embora a promulgação pelo Senhor Presidente da República – sempre tão atento a inconstitucionalidades! – pareça ser uma garantia de que ela não existe. Mas, constitucional ou inconstitucional, a Lei nº. 105/2009, de 14 de Setembro, é e será sempre uma iniquidade. Parece uma Lei feita por malfeitores. Nem os comunistas, no seu período áureo de 1975, se atreveram a tanto. E não chega a loucura habitual dos períodos eleitorais, quando os governos em exercício se aterrorizam com a ideia de perderem as eleições e deitam mão aos golpes mais baixos possíveis, chega paras justificar tal diploma.
A Lei nº. 105/2009, de 14 de Setembro (e não o decreto-lei com o mesmo número, como alguns órgãos da comunicação social referiram), regulamenta o Código do Trabalho, contido na Lei nº. 7/2009, de 12 de Fevereiro. Até aqui tudo bem. Mas só até aqui. Desconte-se que contém regulamentações que vão conduzir a que o Governo possa riscar artificialmente dos números oficiais do desemprego mais uns milhares de desempregados. É feio, é trapaça, mas já estamos habituados. Talvez tais artificiosas medidas se incluam no Programa de Criação de 150.000 Empregos que aquele senhor que se nos apresenta como Primeiro-Ministro nos prometeu. Agora, o que é absolutamente inaceitável é que tão inefanda criatura tenha, na regulamentação constante dos artigos 25º. a 31º. da referida Lei, colocado apenas uma classe social a subsidiar o Estado Social que ele mesmo concebeu.
Nada tenho contra o Estado Social, naturalmente. A protecção dos que não podem prover a si mesmos o sustento de que necessitam deve ser assegurada pelo Estado, desde que se prove que estamos em presença de verdadeira necessidade e não em presença de oportunismo ou preguiça. Nenhum preguiçoso tem o direito a ser sustentado pelo Estado (que somos todos os demais). E, para prover tal protecção, o Estado não tem outro remédio senão ir buscar os meios necessários ao… Estado. Isto é, a TODOS nós. Mediante regras perfeitamente definidas, nas quais todos ficamos em termos de igualdade perante a Lei. E se uma dada Lei conduz a que apenas alguns participem do esforço de financiamento do Estado – que é o caso geral, uma vez que nenhum de nós paga um imposto só por existir – o pagador tem sempre a oportunidade de escolher se quer ou não estar sujeito ao imposto. Exemplificando. Só alguns pagam o imposto sobre o tabaco, mas podem deixar de pagá-lo se deixarem de fumar. O mesmo se diga do imposto sobre os combustíveis, ao qual se pode escapar não os consumindo. Até mesmo ao IVA podemos escapar, desde que não consumamos. Mas o Estado Social não pode, não deve, é iníquo se o faz, é apoiar um dado cidadão em situação de carência colocando o ónus desse apoio sobre outro cidadão que com esse tem uma qualquer relação negocial. Por exemplo, o Estado não pode obrigar, por Lei, um posto de combustíveis a não receber o preço do fornecimento que faz a um desempregado, só porque este está desempregado. Ou não pode, para estarmos mais próximos da realidade, obrigar, por Lei, o merceeiro a fornecer as batatas a um desempregado e não receber o respectivo preço.
Pois na Lei referida, o que esse Senhor iníquo predispôs foi algo de semelhante, relativamente às rendas de casa. E nem sequer é necessário que o inquilino esteja desempregado. Basta que tenha os salários em atraso. Com todas as letras: O PRIMEIRO-MINISTRO COLOCOU OS SENHORIOS A FINANCIAR OS SALÁRIOS EM ATRASO. Inacreditável. Inaceitável. Iníquo. Imprudente, pelo precedente aberto. A prepotência de um governante em risco de perder o emprego transformada em letra de Lei. E, mais inacreditável ainda, tal Lei foi referendada pelo Senhor Presidente da República que, pelos vistos, nem sequer pestanejou ao assinar o diploma legal. Um diploma legal que permite, ao trabalhador que tenha salários em atraso por mais de 15 dias, deixar de pagar a renda da casa que tem alugada sem que nada lhe suceda.
Para doirar a pílula, o senhor primeiro-ministro fez o que lhe é habitual. Ornamentou a disposição com umas disposições que parecem proteger os senhorios, mas que, vamos ver, não protegem nada. São apenas flores artificiais destinadas a esconder os espinhos que vêm no centro do ramo. Assim:
- O trabalhador em tais condições tem também direito a receber, do Estado, subsídio de desemprego (embora não contando para as estatísticas do desemprego);
- Tal subsídio não pode exceder 1/3 do salário ganho no sítio onde trabalha;
- Dispõe, depois, o diploma que o trabalhador deve pagar as rendas em atraso logo que inicie o recebimento do subsídio de desemprego;
- COMO SE FOSSE POSSÍVEL A ALGUÉM, A RECEBER APENAS 1/3 DO SALÁRIO HABITUAL, PAGAR AS RENDAS EM ATRASO AO SENHORIO;
- Ocorre depois, na estrutura do diploma legal aqui comentado, o artifício máximo; no artº. 29º.;
- Segundo este, o Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (FSS) PODE vir a pagar as rendas ao senhorio;
- Mas que se trata tão só de um artifício, que esse facínora chamado Estado está a usar, fica bem evidente em duas breves referências que se lhe seguem, quase perdidas no meio da verborreia legal;
- A primeira referência é que logo se admite, no artº. 30º., que o FSS pode não pagar;
- A segunda referência é que se diz, ainda no artº. 29º., que tal possibilidade acontecerá “EM TERMOS A REGULAMENTAR”;
- Regulamentação que nunca mais virá!
As consequências destas disposições, para os senhorios, são devastadoras. Sem entrar em grande pormenor, diga-se só que, nos termos do citado diploma legal, AS RENDAS PODEM VIR A FICAR EM ATRASO ATÉ QUE, UM DIA, SEJA JULGADA A ACÇÃO EM QUE O TRABALHADOR REIVINDICA À ENTIDADE PATRONAL O PAGAMENTO DOS SALÁRIOS EM ATRASO. O que pode durar anos, sobretudo se, pelo meio, se meter um processo de falência da referida entidade patronal.
Não hesito em pronunciar o que me parece. O Governo de José Sócrates acaba de legislar a expropriação gratuita da casa arrendada, a favor do inquilino com problemas laborais. Já não é um problema de censura que é necessária. O que é necessário é varrer de vez com um Primeiro-Ministro atemorizado com a eventualidade de perder o Poder, que não vacila em ofender desta maneira – violenta, malfeitora, salteadora – o direito à propriedade privada e ao usufruto dos bens que a um cidadão qualquer pertencem. E, gravidade suprema, este gesto iníquo teve o apadrinhamento do Senhor Presidente da República.
Tendo em conta o estado moribundo em que se encontra a nossa Justiça, os factos aqui comentados apenas trazem ao meu espírito o Hino Nacional. Curiosamente, apenas um verso. “Às armas!... Às armas!...”.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 18/9/2009
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