(continuação)
Soou o telefone. Já quase se tinha esquecido da chamada, entretido como estava, a olhar para umas cartas militares trazidas do Quartel-General, nas quais assinalara, com uma cruz, as povoações aonde ficariam instaladas as suas companhias. A voz da mulher soou algo alvoroçada do outro lado. O filho apresentara já o seu pedido de demissão do Exército. Ela tentara ainda demovê-lo, convencê-lo a ficar-se por uma licença ilimitada, na esperança do esmorecimento da dor deixada pela experiência indiana e pelas suas sequelas. Mas ele mostrara-se irredutível. Constava, entretanto, que só iam incriminar o Vassalo. Soveral quis falar com o filho. E ficou a aguardar. A mãe regressou pouco depois, trazendo-lhe a sua recusa de falar com o pai. Estava no quarto, aparentemente em profunda depressão. O trauma da invasão de Goa, do campo de prisioneiros indiano e do campo de prisioneiros português iria acompanhá-lo por muito tempo ainda. Soveral recomendou à mãe que o aconselhasse a ir falar com o tio. Mas Amélia tinha mais notícias. Sobre Rafaela. A mulher do Pestana telefonara-lhe, dizendo ter sabido que a PIDE descobrira a proximidade entre a filha e um tal José António. Soveral avaliou a inutilidade de ter escondido isso da mulher. Segundo a PIDE, continuou esta, o dito José António era, nos meios estudantis, um agitador contra a guerra colonial. E era bem possível a convocação da rapariga para prestar declarações. A preocupação maior de Amélia tinha, porém, outra razão de ser. António Soveral quis saber qual. Algo enigmaticamente, a mulher começou a falar no carro da rapariga. Que não estava em condições de circular. Tinha um defeito qualquer nos travões. Mas isso era fácil, mandassem o carro para a oficina. Amélia insistiu. Não podia ser, disse, entre algumas hesitações. Ora essa! Porque não? É que o automóvel tinha o mesmo defeito que o do filho do Mendonça, lembras-te?... Soveral franziu o cenho. A mulher estava a falar-lhe por metáforas. Estava a querer dizer-lhe qualquer coisa de que não podia falar abertamente, com o receio, provavelmente justificado, de a chamada estar a ser filtrada pela escuta policial. O defeito prende as rodas e o volante se não se travar, perguntou. Sim, respondeu do outro lado a mulher. Se calhar Rafaela deixara o tal José António conduzir o carro, não? E fora ele quem lho avariara, não? A mulher confirmou. Via claro, agora. Onde está ao automóvel? À porta de casa. Soveral reflectiu em silêncio. Era necessário agir depressa. Se a Pide descobrisse aquilo, Rafaela estaria metida numa grande embrulhada. Amélia estava aflita. Não sei onde encontrar um mecânico de confiança. Pois não. Na situação que se vivia, ninguém sabia em quem podia confiar.
(continua)
Magalhães Pinto
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