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27.12.07

OS HERÓIS E O MEDO - 128º. fascículo

(continuação)

Mário tinha perdido o resto do discurso do Comandante, embrulhado nos seus pensamentos pessimistas. Foi dada ordem para montarem para os Unimogs e para as Berliets, com destino à carreira de tiro.


XVII

Passeavam-se os três pelo Pidgiguiti. Caía o dia. O sol rasante do poente tornava ainda mais amarelas as águas do Geba. Os jagudis tinham já recolhido e acumulavam-se nos muros do quartel dos fuzileiros e nas amuradas do forte da Amura. Duas reminiscências portuguesas. Ali plantadas há séculos, seguramente. A tradicional construção em estrela do forte, igual às muitas que bordejavam o Atlântico e o Índico, desde o Bojador até à Índia. Outra, bem mais recente, e sem forma definida. Apenas uma fronteira entre os civis e a tropa. Ao longo da avenida paralela ao rio, desde zona comercial da cidade até ao cais, palmeiras esguias de frondosas copas, nas folhas das quais a brisa parecia entoar ainda a queixosa melopeia dos escravos que, dali, tinham sido levados para o Brasil. No cais, em redor de um velho navio de carga português, os negros labutavam ainda, alombando com os sacos de coconote às costas, num vai e vem sem parança, serpente coleante de bizarra armadura sobre as costas. Mário sentia-se bem na companhia do Álvaro e do Manuel. O seu espírito, em geral atormentado e interrogativo, deixava-se contagiar pela paz do crepúsculo e pela inevitabilidade das coisas. O Manuel conduzia a conversa, com a sua alegria habitual. E, também como habitualmente, o seu tema preferido eram as mulheres. Não haveria mulheres desejáveis naquela terra? Como se iriam aviar durante aqueles dois anos à sua frente? Brancas, nem vê-las. A não ser na esplanada do Bento, ali na outra avenida que rasgava a cidade ao meio, desde a margem do rio até à Praça do Império, onde o Governador da Província tinha a sua residência oficial. Mas essas, as mulheres da esplanada, estavam sempre com macho à cernelha, como dizia o Manel. Eram inatingíveis. Das outras, ou eram muito crianças ou traziam quase sempre um filho às costas, argumento suficiente para matar os desejos mais atrevidos. Mas tinha que haver onde saciar o instinto, teimava o Manel. Onde há tropa aos montes, há mulheres à procura dela. Uma sondagem junto dos mais antigos, de outros batalhões, provocara o gozo destes. Na Guiné, a melhor amante, sempre disponível, fiel, limpa e asseada, sem doenças, tinha cinco dedos, dissera um deles. E era muito melhor do que uma outra amante, por alguém encontrada, a qual inçara o pobre com moléstia tão grave que, menos de um mês depois, o gajo fora hospitalizado de urgência e cortara a gaita. Daí para o futuro, a única gaita ao seu dispor seria a de beiços, concluíra o veterano, com um riso meio de gozo meio de medo.

(continua)
Magalhães Pinto

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