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29.12.07

OS HERÓIS E O MEDO - 130º. fascículo

(continuação)

Guerra de fantasmas. A escapulirem-se, uns, entre as malhas tecidas por uma tropa inexperiente, ainda verde. A regressarem a penates, outros, com os ossos transparentes, feitos da lata de milhares de conservas consumidas. São todos heróis. Mal sabem, uns e outros, pelo que lutam. Embora lhes digam que é pela mesma coisa. A Pátria. Como sois heróis, meus irmãos! Não foi em vão que, em Portugal, no outro Portugal, sofrestes na pele as agruras de um viver subdesenvolvido. A dureza de lá ameniza a de cá, mil vezes mais dura. Três meses! Três eternidades de privação, de dor, de febre, de paludismo, de hepatite, de diarreia, de fome, de sede, de roupa suja colada ao corpo. Sujos. Porcos. Montes de merda empunhando as armas. A dormir sobressaltados. Em alerta sobressaltado. Em alerta sem descanso. Sempre com a secreta esperança de sair dali vivo. De vez em quando, ali mesmo ao lado, um camarada a esvair-se em sangue, como se tivesse sido picado por um monstruoso mosquito cujo ferrão teria, a avaliar pela fonte do sangue, a espessura de um dedo. Como sois heróis, meus irmãos! Ninguém no mundo, mais nenhum soldado, faria uma guerra nas vossas condições. Soldados baratos. Vale mais pagar uma pensão de sangue na Metrópole do que colocar uma auto-metralhadora ao vosso lado. Como sois heróis, meus irmãos! Pergunto-me se algum dia, lá longe, alguém terá consciência da vossa heroicidade. Vejo-vos velhos, um neto sentado nos joelhos, com o medo ainda a bailar-vos nos olhos sob a forma de um sorriso fugidio, a contardes histórias da Ilha do Como. Oxalá eles não consigam entender-vos. As crianças não devem perceber infernos desta natureza. Como sois heróis, meus irmãos! Inglórios. Por um momento, tornaste-vos os únicos heróis sobreviventes da Ilha do Como. Por pouco tempo. Daqui a nada, os outros regressarão. Talvez aí devais voltar. Uma vez e outra vez e outra vez ainda. Num jogo de escondidas em que ser apanhado arruma de vez.

(continua)

Magalhães Pinto

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