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8.1.10

CRÓNICA DA SEMANA

UMA LIÇÃO GRATUITA

“O dr. Soares uma vez chamou-me anjinho. Só um anjinho é que fala de privatizações, de reduzir os salários na função pública, de subir o IVA para valores elevados. Mas o que digo é que é preciso um anjinho para acreditar que tudo pode continuar na mesma.”
Prof. Daniel Bessa – PÚBLICO – 4/1/2010


Tenho enorme apreço – e estima – pelo Prof. Daniel Bessa. Foi meu professor na Faculdade de Economia da Universidade do Porto, onde recebi as suas lições com proveito, e, ainda que por pouco tempo, fui seu companheiro de trabalho no Banco Português do Atlântico. Daí que não perca nenhuma das suas palavras vindas a público. Por isso e porque são, geralmente, competentes. Como aconteceu com a relativamente extensa entrevista sua contida no PÚBLICO da última segunda-feira. Uma lição mais, desta vez gratuita, vinda de um homem que alguns podem considerar anjinho mas que tem a virtude de dizer o que pensa com simplicidade e clareza. Tanto mais valioso por vir de alguém que não enjeitando a intervenção política, está contudo suficientemente dela desprendido para se poder dar ao luxo de dizer honestamente aquilo que pensa.
Em algum sítio – provavelmente aqui – eu disse que só a verdade pode verdadeiramente gerar a esperança. E não as palavras recheadas de optimismo balofo em cada dia desmentido pela realidade. E, subitamente, eis que duas intervenções públicas quase seguidas - a do Senhor Presidente da República e a do Prof. Daniel Bessa – deixam uma réstia de esperança. Ainda há quem fale verdade em Portugal. Ou seja, ainda há razões para ter esperança.
Do que ele disse naquela entrevista, retive algumas ideias por ele sublinhadas:
1.- Os governos portugueses não têm tido a preocupação de elaborar Orçamentos de Estado superavitários, quando os tempos económicos vão de feição. Por isso, vamos acumulando défices (que se tornam dívida pública) cujos efeitos notoriamente mais negativos surgem quando os tempos são de crise.
2.- É necessário começar a reduzir o défice do Estado já em 2010, pela insustentabilidade da presente situação.
3.- A dimensão do défice actual é tamanha que a solução já não pode vir da acção sobre a despesa, mesmo que se pense numa redução dos salários nominais da função pública.
4.- Tampouco pode vir dos impostos, dada a dimensão absolutamente insustentável que estes haveriam de assumir (IVA de 23 a 35% e IRS de 52 a 87%, dependendo da combinação entre os dois).
Depois desta análise, ficam realmente poucos caminhos, como o Professor reconhece. E coloca a tónica da resolução do nosso problema estrutural nas Contas Públicas no investimento – tanto em equipamentos como nas pessoas – e na privatização de funções e património do Estado.
Meditei sobre a lição do meu antigo professor. E cheguei à conclusão de que ele está tão pessimista como eu estou. Aliás, algo que ele reflecte numa pequena expressão, quase a terminar a sua entrevista. Diz ele:
“E então? O que eu sei é que alguma coisa tem que ser feita, porque se não for, os credores resolvem o problema.”.
O remate não podia ser mais esclarecedor. E que me desculpe o Senhor Governador do Banco de Portugal, por desprezar a sua lição, quando ensaiou alinhar no optimismo que o Governo tem vindo a procurar mostrar, ao dizer que “ainda não somos os piores da Europa”. Um alinhamento porventura inserido na tentativa de esbatimento do dramatismo colocado pelo Senhor Presidente da República no seu discurso de Ano Novo. A verdade é que o crédito já está mais caro para Portugal (ajudando os juros à crucifixão) e aquilo que o Professor Daniel Bessa está a colocar em evidência é que o crédito (externo, claro) pode faltar. E, se chegarmos aí, é aquilo a que podemos chamar a bancarrota. Nessa altura faltarão os produtos (para consumo e para investimento) e os serviços importados. E, como não somos auto-suficientes, podemos cair numa situação em que temos dinheiro no bolso mas não temos que comprar. E a consequência lógica disso é a perda de valor do dinheiro. Nem quero imaginar a desgraça que seria se aí chegássemos.
Mas o Professor Daniel Bessa fala ainda numa outra alternativa. A utilização do património público para reequilibrar as contas. Como? Vendendo os bens e privatizando os serviços. Aqui, penso eu, bens já não haverá muitos para vender. Vai ficar disponível o BPN (recordemos que está nacionalizado, através da CGD) e sempre poderia ser privatizada também a própria CGD. Mas todos os governos têm afirmado que a CGD não deve ser privatizada. Portanto, não será por aí. Património imobiliário só poderia ser vendido, com a rapidez necessária, à custa de enormes perdas de valor. E o professor Bessa avança com a ideia da privatização dos hospitais e das escolas públicas. Uma ideia tão mais notável quanto provém de um homem assumidamente de esquerda. E, se tal se desse, eu estou a ver a Esquerda Portuguesa a bramar desalmadamente contra o desaforo.
Para além de colocar as ideias alinhadas com uma simplicidade e clareza notáveis, o meu antigo professor tem um mérito adicional. Mostra-nos que se fecharam, já, quase todos os caminhos por onde nos podíamos esgueirar da actual crise. Podem os teóricos que por aí há ensaiar outras ideias, enunciar outras soluções. Serão meros afluentes. Irão sempre desaguar no turbulento rio que o Professor Daniel Bessa colocou à frente dos nossos olhos. Temos tido um Estado gastador em excesso. Chegou a factura. E os meios que temos para a pagar são muito escassos. E, meu Caro Leitor, nunca esqueça que Estado somos todos nós. Embora quem tenha gasto em excesso foram os (des)governos que Você e eu elegemos.
Para terminar esta reflexão que uma lição (que agradeço) gratuita me provocou, manifestar um só desacordo com o meu professor. Ele diz que tudo começou em 1990. Eu não tenho essa opinião. Em 2000, estávamos bastante bem. E é com o Governo permissivo e gastador em excesso de António Guterres que entrámos no plano inclinado. Assim como há uma responsabilidade que não pode deixar de ser assumida. Nos últimos quinze anos, o Partido Socialista governou treze, mais ou menos. É, senão o único, o grande, o enorme responsável pela situação a que estamos remetidos.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 7/1/2010

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