"IGAE investiga se polícias fazem segurança paga em discotecas."
António Arnaldo Mesquita - "PÚBLICO" - 31/8/2007
***
Se há tantos seguranças a fazerem de polícia, de tribunal e de carcereiros, é natural que os polícias retaliem...
. . . OS SINAIS DO NOSSO TEMPO, NUM REGISTO DESPRETENSIOSO, BEM HUMORADO POR VEZES E SEMPRE CRÍTICO. . .
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31.8.07
A GLOBALIZAÇÃO E O PAPEL DOS PALOP
(continuação)
Muitos dirão, chegados aqui, que já temos especulação intelectual que chegue. Com a agravante de termos sido conduzidos ao que parece ser uma estrada sem saída. Mas eu acho que ainda falta analisar uma ideia. Será que não podemos compatibilizar o que parece ser um destino inelutável com o aproveitamento das forças que, por sermos diferentes, temos? Será que temos que afogar-nos, anonimamente, no mar dos milhões de milhões cada vez mais parecidos conosco? Ou com quem nos parecemos cada vez mais, o que dá no mesmo? Numa amálgama cultural em que, por não existirem diferenças, nos tornamos insensíveis ao próximo. Só nos sentimos a nós. Será que não temos a obrigação de preservar a nossa cultura, nós, todos aqueles que, quer queiramos quer não, trazemos na alma, desde os fenícios, os gregos, os cartagineses, os romanos, os árabes, os tupi, os manjacos, os maconde, um modo próprio de ser e, sobretudo, de estar? Será que não devemos utilizar a força imensa da nossa cultura comum para não nos perdermos na vala comum? Será que, se nada fizermos, no fim teremos apenas um imenso vazio cultural, isto, é, cultura nenhuma?
A cultura é algo muito vasto. Que percorre a distância que vai do indivíduo à comunidade. Que fixa distâncias e aproxima pessoas. Que aglutina e distingue. Uma espécie de marca que trazemos à nascença. Ainda em potência. Mas cuja realização é a nossa própria realização. Vida fora, sofreremos a influência e influenciaremos a cultura que, de algum modo, é o caldo no qual nos movemos. É o fermento da nossa realização pessoal ou de grupo. Sem exagerar, a cultura somos nós, na parcela do nosso ser que mais nos identifica como espécie, passe o quase pleonasmo, muito especial: o espírito, os valores. Sem exagerar, a cultura é o Homem. E é pela cultura, nas suas mais variadas manifestações, da “pimba” à erudita, da popular à escolástica, da História à Ciência, da Arte ao Saber, que nos valorizamos, que nos desenvolvemos, que nos tornamos cada vez mais perfeitos e, por isso, mais felizes. Uma felicidade assente na nossa diferença e na sua aceitação. Nenhuma outra espécie natural contém tantas diferenças e tão pronunciadas, como a espécie humana. Não no corpo, onde essas diferenças são diminutas, como nas outras espécies. Mas no espírito, nos ideais, nos conhecimentos, nos valores, nos sentimentos, nas manifestações da vontade, onde as diferenças são quase ilimitadas. A cultura é constituída, não apenas pelas nossas semelhanças, mas também pelas nossas diferenças.
De certo modo, a cultura está para a parte mais nobre do nosso ser, o espírito, como os bens materiais para o nosso corpo, para as nossas necessidades materiais. Por um lado, somos nós que os produzimos, tanto a cultura como os bens materiais. E, por outro lado, não podemos viver felizes sem ambos, os bens materiais e a cultura. Todavia, é através da cultura que podemos tornar-nos imortais. O corpo, que produzimos ao longo da nossa vida, esboroa-se, desvanece-sa, desaparece. O produto do nosso espírito permanecerá muito para além da nossa morte, podendo mesmo ser eterno. Do corpo de Camões só resta, na urna que está nos Jerónimos, uma réstea de poeira. A sua obra viverá enquanto houver um homem a falar Português.
Tal como as matérias primas necessárias à produção dos bens materiais são múltiplas, variadas, também a cultura precisa de elementos racionais, de elementos sentimentais e de elementos da vontade. Porque a razão, o sentimento e a vontade são a essência dos homens, do Homem, da Humanidade.
Extracto de uma conferência com o mesmo título - Magalhães Pinto
(continua)
Muitos dirão, chegados aqui, que já temos especulação intelectual que chegue. Com a agravante de termos sido conduzidos ao que parece ser uma estrada sem saída. Mas eu acho que ainda falta analisar uma ideia. Será que não podemos compatibilizar o que parece ser um destino inelutável com o aproveitamento das forças que, por sermos diferentes, temos? Será que temos que afogar-nos, anonimamente, no mar dos milhões de milhões cada vez mais parecidos conosco? Ou com quem nos parecemos cada vez mais, o que dá no mesmo? Numa amálgama cultural em que, por não existirem diferenças, nos tornamos insensíveis ao próximo. Só nos sentimos a nós. Será que não temos a obrigação de preservar a nossa cultura, nós, todos aqueles que, quer queiramos quer não, trazemos na alma, desde os fenícios, os gregos, os cartagineses, os romanos, os árabes, os tupi, os manjacos, os maconde, um modo próprio de ser e, sobretudo, de estar? Será que não devemos utilizar a força imensa da nossa cultura comum para não nos perdermos na vala comum? Será que, se nada fizermos, no fim teremos apenas um imenso vazio cultural, isto, é, cultura nenhuma?
A cultura é algo muito vasto. Que percorre a distância que vai do indivíduo à comunidade. Que fixa distâncias e aproxima pessoas. Que aglutina e distingue. Uma espécie de marca que trazemos à nascença. Ainda em potência. Mas cuja realização é a nossa própria realização. Vida fora, sofreremos a influência e influenciaremos a cultura que, de algum modo, é o caldo no qual nos movemos. É o fermento da nossa realização pessoal ou de grupo. Sem exagerar, a cultura somos nós, na parcela do nosso ser que mais nos identifica como espécie, passe o quase pleonasmo, muito especial: o espírito, os valores. Sem exagerar, a cultura é o Homem. E é pela cultura, nas suas mais variadas manifestações, da “pimba” à erudita, da popular à escolástica, da História à Ciência, da Arte ao Saber, que nos valorizamos, que nos desenvolvemos, que nos tornamos cada vez mais perfeitos e, por isso, mais felizes. Uma felicidade assente na nossa diferença e na sua aceitação. Nenhuma outra espécie natural contém tantas diferenças e tão pronunciadas, como a espécie humana. Não no corpo, onde essas diferenças são diminutas, como nas outras espécies. Mas no espírito, nos ideais, nos conhecimentos, nos valores, nos sentimentos, nas manifestações da vontade, onde as diferenças são quase ilimitadas. A cultura é constituída, não apenas pelas nossas semelhanças, mas também pelas nossas diferenças.
De certo modo, a cultura está para a parte mais nobre do nosso ser, o espírito, como os bens materiais para o nosso corpo, para as nossas necessidades materiais. Por um lado, somos nós que os produzimos, tanto a cultura como os bens materiais. E, por outro lado, não podemos viver felizes sem ambos, os bens materiais e a cultura. Todavia, é através da cultura que podemos tornar-nos imortais. O corpo, que produzimos ao longo da nossa vida, esboroa-se, desvanece-sa, desaparece. O produto do nosso espírito permanecerá muito para além da nossa morte, podendo mesmo ser eterno. Do corpo de Camões só resta, na urna que está nos Jerónimos, uma réstea de poeira. A sua obra viverá enquanto houver um homem a falar Português.
Tal como as matérias primas necessárias à produção dos bens materiais são múltiplas, variadas, também a cultura precisa de elementos racionais, de elementos sentimentais e de elementos da vontade. Porque a razão, o sentimento e a vontade são a essência dos homens, do Homem, da Humanidade.
Extracto de uma conferência com o mesmo título - Magalhães Pinto
(continua)
PERGUNTAS SEM RESPOSTA
OS HERÓIS E O MEDO - 12º. fascículo
(continuação)
Mário pediu licença para se ausentar do quartel. Foi-lhe imediatamente concedida. O mobilizado tinha direitos especiais de tratamento. Cada vontade sua era como se fosse a última vontade dum condenado à morte. Ninguém, nenhum superior, se atrevia a recusar o pedido de um mobilizado. Os companheiros disponibilizavam-se, sem exigências de maior, para substituir os mobilizados nas escalas de serviço. Albergando, na alma, um suave e imperceptível sentimento de alegria por não ter chegado, ainda, a sua vez. O Regulamento de Disciplina Militar não existia para os eleitos da guerra, salvo face a actos de rebelião. Desde que aceitassem partir sem revolta, era como se tivessem deixado de fazer parte dos efectivos. Mário pediu para sair, sem saber o que ia fazer. Não tinha vontade de regressar a casa e enfrentar a tristeza. Para tristeza já bastava a sua. Deambulou pela cidade. Olhava-a com olhos novos. Tantos pormenores nos quais nunca havia reparado. Era como se a cidade, na qual sempre nascera e vivera, tivesse vestido um fato novo. As pessoas cirandavam nos seus afazeres de sempre. Indiferentes. Para elas tanto se lhes dava que houvesse uma guerra como não. Pelo menos aparentemente. A não ser que fossem apenas autómatos, submetidos a uma vontade superior, de títere, a manejar os cordéis. Não teriam filhos, namorados, noivos, esposos, amigos, a partir para a guerra? E se tinham, como podiam andar assim, indiferentes? Mário acabou a viagem sem destino junto ao mar. Dentro em pouco ia atravessá-lo, navegador improvisado à redescoberta de antigas gentes.
(continua)
Magalhães Pinto
Mário pediu licença para se ausentar do quartel. Foi-lhe imediatamente concedida. O mobilizado tinha direitos especiais de tratamento. Cada vontade sua era como se fosse a última vontade dum condenado à morte. Ninguém, nenhum superior, se atrevia a recusar o pedido de um mobilizado. Os companheiros disponibilizavam-se, sem exigências de maior, para substituir os mobilizados nas escalas de serviço. Albergando, na alma, um suave e imperceptível sentimento de alegria por não ter chegado, ainda, a sua vez. O Regulamento de Disciplina Militar não existia para os eleitos da guerra, salvo face a actos de rebelião. Desde que aceitassem partir sem revolta, era como se tivessem deixado de fazer parte dos efectivos. Mário pediu para sair, sem saber o que ia fazer. Não tinha vontade de regressar a casa e enfrentar a tristeza. Para tristeza já bastava a sua. Deambulou pela cidade. Olhava-a com olhos novos. Tantos pormenores nos quais nunca havia reparado. Era como se a cidade, na qual sempre nascera e vivera, tivesse vestido um fato novo. As pessoas cirandavam nos seus afazeres de sempre. Indiferentes. Para elas tanto se lhes dava que houvesse uma guerra como não. Pelo menos aparentemente. A não ser que fossem apenas autómatos, submetidos a uma vontade superior, de títere, a manejar os cordéis. Não teriam filhos, namorados, noivos, esposos, amigos, a partir para a guerra? E se tinham, como podiam andar assim, indiferentes? Mário acabou a viagem sem destino junto ao mar. Dentro em pouco ia atravessá-lo, navegador improvisado à redescoberta de antigas gentes.
(continua)
Magalhães Pinto
SORRISO DO DIA
30.8.07
A GLOBALIZAÇÃO E O PAPEL DOS PALOP
(continuação)
Hoje, cerca de duzentos milhões de pessoas falam a Língua Portuguesa no Mundo. Cerca de três quartos nessa grandiosa nação, que é o Brasil. Proporção que, inexoravelmente diminuirá com a mais que previsível expansão demográfica dos novos países independentes de África que têm o Português como sua expressão oficial. Populações dispondo de territórios e recursos imensos, capazes de sustentar populações muito mais numerosas. Donde, um potencial de c rescimento demográfico assinalável. Com um dado mais, para ilustrar o nosso pensamento. Hoje, também, as comunidades que falam português espalham-se por todo o Mundo, estão em cada recanto do planeta. Tolerantes. Pacíficas. Servindo ao enriquecimento de muitos países, com o seu labor. Uma força enorme. Económica. Social. Cultural.
É nossa obrigação, no desenho que quisermos traçar do futuro, pensar no que fazer com essa força. Qual é o nosso papel - de todos os que falamos esta bela língua de Pessoa, de Veríssimo, de Pepetela - na estrada que, do passado, nos conduz ao futuro? Que vamos fazer do tesouro que nos foi legado? Como vamos, sobretudo, colocá-lo ao serviço das gentes?
Olhamos em redor e que vemos, desde que Hiroshima colocou um ponto final na História Moderna? O nascer de uma cultura alienante, padronizada, superficial, na qual os valores matriciais são a riqueza e o poder. Onde os valores morais se afundam. Não é por acaso que, nessa cultura, os homens são divididos em "winners" e "losers". Como se viver simplesmente uma vida cheia de dificuldades, uma vida de luta contra as adversidades, e saber conduzi-la, com dignidade, ao fim que todas as vidas têm, não fosse maior vitória do que o maior dos sucessos. As tendências de tal cultura, que se desenvolveram no interregno prolongado até Nova Iorque, no fatídico "11 de Setembro", vão acelerar-se, estão já a acelerar-se, naquilo que será, indubitavelmente, a História Post-Moderna. Não tardará que o Mundo inteiro esteja subjugado a esse novo esperanto que é a língua inglesa. E, com essa subjugação, serão todos os valores morais, espirituais, culturais, que enformam os povos que falam a Língua Portuguesa, a perder-se, arrumados nos arquivos apenas lúdicos da memória.
Eu sei que é difícil, muito difícil, lutar contra esta marcha, aparentemente inelutável, da História. Dirá alguém, com espírito mais prático e menos poético do que o meu, que não há outro remédio. Não seria compreensível que, naquilo a que se chama a "aldeia global", convivessem dezenas de culturas. Uma aldeias, uma cultura, parece ser o motu dos tempos que por aí vão. Vivemos num Mundo onde cada canto está à nossa porta. No espaço de breves minutos, posso ver que tempo faz em Pequim, qual é o programa do Moulin Rouge em Paris e ver duas torres a cair em Nova Iorque. A informação - antigamente apenas de alguns para alguns - é hoje de todos para todos. E gira à velocidade da luz. Bastam apenas algumas horas para um vírus informático, introduzido no circuito nos Estados Unidos, atingir milhões de computadores em todo o Mundo. Posso fazer compras em Taipé, na Florida, ou Círculo Polar Ártico, quase simultâneamente. Tudo em tempo real. E, se o produto comprado for intelectual, posso tê-la em casa naquele mesmo instante. As pessoas deixam-se apanhar no vórtice e, a certa altura, já não são os factos a girar vertiginosamente em redor das pessoas. Já são elas a girar vertiginosamente em redor dos factos. Já ninguém tem tempo para admirar um pôr do sol a pintar rubores em nuvens esparsas, ou para ver o vagaroso desabrochar uma flor, num sinal iludível de que a Natureza não alinha na vertigem global.
Este fenómeno, a que alguém chamou da globalização, trouxe consigo algumas virtudes. Alguns exemplos. A destruição da Amazónia já não é um problema exclusivo dos brasileiros. Tem que ver conosco. Com todo o Mundo. A poluição gerada pela poderosa indústria dos Estados Unidos já não é apenas um problema dos americanos. Tem que ver conosco. Os bens tornaram-se, subitamente, mais acessíveis e mais baratos, contribuindo para um maior bem-estar das pessoas. A ciência progrediu anos-luz em escassas duas décadas, devido ao rápido fluir do conhecimento. Estamos a meia dúzia de passos de poder vergar, perante o nosso querer indominável, as fronteiras to tempo. Já não se pode fazer uma guerra sem encontrar pela frente uma resistência tenaz das pessoas. A globalização trouxe consigo novos valores que, embora nos sejam estranhos, não deixam de ser valores. Seria loucura negar isso. Mas o que verdadeiramente importa é perguntar: a que preço? Economista por formação, não sou capaz de me divorciar da ideia base da economia, que me foi inculcada nos já longínquos anos de formação. Não sou capaz de julgar a valia de uma alternativa sem saber o preço a pagar por ela. O que, em termos económicos, quer dizer "sem conhecer os termos da alternativa ao que avalio". Mas, sempre que chego aqui nos meus pensamentos, sinto-me derrotado. Tarefa inglória! Nunca saberemos o preço a pagar pela evolução histórica, pelo simples facto de que em História, não é possível viver em alternativa e, em História, só vivendo sabemos o que pagamos. Mas algo fica. Mais como sentimento, como pressentimento, do que como conclusão lógica. Estamos a assistir à profunda desumanização do Homem. Estamos a assistir à destruição sistemática daquilo que fazia de cada um de nós uma criatura única da natureza. E isso, meus Amigos, não é bom. Melhor, pressinto que não é bom.
Extracto de uma conferência com o mesmo título - Magalhães Pinto
(continua amanhã)
Hoje, cerca de duzentos milhões de pessoas falam a Língua Portuguesa no Mundo. Cerca de três quartos nessa grandiosa nação, que é o Brasil. Proporção que, inexoravelmente diminuirá com a mais que previsível expansão demográfica dos novos países independentes de África que têm o Português como sua expressão oficial. Populações dispondo de territórios e recursos imensos, capazes de sustentar populações muito mais numerosas. Donde, um potencial de c rescimento demográfico assinalável. Com um dado mais, para ilustrar o nosso pensamento. Hoje, também, as comunidades que falam português espalham-se por todo o Mundo, estão em cada recanto do planeta. Tolerantes. Pacíficas. Servindo ao enriquecimento de muitos países, com o seu labor. Uma força enorme. Económica. Social. Cultural.
É nossa obrigação, no desenho que quisermos traçar do futuro, pensar no que fazer com essa força. Qual é o nosso papel - de todos os que falamos esta bela língua de Pessoa, de Veríssimo, de Pepetela - na estrada que, do passado, nos conduz ao futuro? Que vamos fazer do tesouro que nos foi legado? Como vamos, sobretudo, colocá-lo ao serviço das gentes?
Olhamos em redor e que vemos, desde que Hiroshima colocou um ponto final na História Moderna? O nascer de uma cultura alienante, padronizada, superficial, na qual os valores matriciais são a riqueza e o poder. Onde os valores morais se afundam. Não é por acaso que, nessa cultura, os homens são divididos em "winners" e "losers". Como se viver simplesmente uma vida cheia de dificuldades, uma vida de luta contra as adversidades, e saber conduzi-la, com dignidade, ao fim que todas as vidas têm, não fosse maior vitória do que o maior dos sucessos. As tendências de tal cultura, que se desenvolveram no interregno prolongado até Nova Iorque, no fatídico "11 de Setembro", vão acelerar-se, estão já a acelerar-se, naquilo que será, indubitavelmente, a História Post-Moderna. Não tardará que o Mundo inteiro esteja subjugado a esse novo esperanto que é a língua inglesa. E, com essa subjugação, serão todos os valores morais, espirituais, culturais, que enformam os povos que falam a Língua Portuguesa, a perder-se, arrumados nos arquivos apenas lúdicos da memória.
Eu sei que é difícil, muito difícil, lutar contra esta marcha, aparentemente inelutável, da História. Dirá alguém, com espírito mais prático e menos poético do que o meu, que não há outro remédio. Não seria compreensível que, naquilo a que se chama a "aldeia global", convivessem dezenas de culturas. Uma aldeias, uma cultura, parece ser o motu dos tempos que por aí vão. Vivemos num Mundo onde cada canto está à nossa porta. No espaço de breves minutos, posso ver que tempo faz em Pequim, qual é o programa do Moulin Rouge em Paris e ver duas torres a cair em Nova Iorque. A informação - antigamente apenas de alguns para alguns - é hoje de todos para todos. E gira à velocidade da luz. Bastam apenas algumas horas para um vírus informático, introduzido no circuito nos Estados Unidos, atingir milhões de computadores em todo o Mundo. Posso fazer compras em Taipé, na Florida, ou Círculo Polar Ártico, quase simultâneamente. Tudo em tempo real. E, se o produto comprado for intelectual, posso tê-la em casa naquele mesmo instante. As pessoas deixam-se apanhar no vórtice e, a certa altura, já não são os factos a girar vertiginosamente em redor das pessoas. Já são elas a girar vertiginosamente em redor dos factos. Já ninguém tem tempo para admirar um pôr do sol a pintar rubores em nuvens esparsas, ou para ver o vagaroso desabrochar uma flor, num sinal iludível de que a Natureza não alinha na vertigem global.
Este fenómeno, a que alguém chamou da globalização, trouxe consigo algumas virtudes. Alguns exemplos. A destruição da Amazónia já não é um problema exclusivo dos brasileiros. Tem que ver conosco. Com todo o Mundo. A poluição gerada pela poderosa indústria dos Estados Unidos já não é apenas um problema dos americanos. Tem que ver conosco. Os bens tornaram-se, subitamente, mais acessíveis e mais baratos, contribuindo para um maior bem-estar das pessoas. A ciência progrediu anos-luz em escassas duas décadas, devido ao rápido fluir do conhecimento. Estamos a meia dúzia de passos de poder vergar, perante o nosso querer indominável, as fronteiras to tempo. Já não se pode fazer uma guerra sem encontrar pela frente uma resistência tenaz das pessoas. A globalização trouxe consigo novos valores que, embora nos sejam estranhos, não deixam de ser valores. Seria loucura negar isso. Mas o que verdadeiramente importa é perguntar: a que preço? Economista por formação, não sou capaz de me divorciar da ideia base da economia, que me foi inculcada nos já longínquos anos de formação. Não sou capaz de julgar a valia de uma alternativa sem saber o preço a pagar por ela. O que, em termos económicos, quer dizer "sem conhecer os termos da alternativa ao que avalio". Mas, sempre que chego aqui nos meus pensamentos, sinto-me derrotado. Tarefa inglória! Nunca saberemos o preço a pagar pela evolução histórica, pelo simples facto de que em História, não é possível viver em alternativa e, em História, só vivendo sabemos o que pagamos. Mas algo fica. Mais como sentimento, como pressentimento, do que como conclusão lógica. Estamos a assistir à profunda desumanização do Homem. Estamos a assistir à destruição sistemática daquilo que fazia de cada um de nós uma criatura única da natureza. E isso, meus Amigos, não é bom. Melhor, pressinto que não é bom.
Extracto de uma conferência com o mesmo título - Magalhães Pinto
(continua amanhã)
PENSAMENTO DO DIA
FRASE DO DIA
"O aumento (do preço dos livros escolares) equivale a dois ou três cafés por ano."
Governo, em resposta às críticas das famílias - "PÚBLICO" - 30/8/2007
***
Dois ou três cafézinhos nos livros, dois ou três na gasolina, dois ou três no IVA sobre imposto, dois ou três nas taxas moderadoras da Saúde, dois ou três na... Por aí fora. Começa a ser viável para todos fazer uma pequena plantação de café no quintal... Ou nos vasos que temos lá em casa...
Governo, em resposta às críticas das famílias - "PÚBLICO" - 30/8/2007
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Dois ou três cafézinhos nos livros, dois ou três na gasolina, dois ou três no IVA sobre imposto, dois ou três nas taxas moderadoras da Saúde, dois ou três na... Por aí fora. Começa a ser viável para todos fazer uma pequena plantação de café no quintal... Ou nos vasos que temos lá em casa...
OS HERÓIS E O MEDO - 11º. fascículo
(continuação)
Foste mobilizado. Vais para Ultramar. Não vai nunca saber, meu capitão, quantas coisas destruiu na minha alma. As suas duas frases, secas, sintéticas, ditas assim, à bruta, ecoaram na minha alma como uma bomba atómica, espalhando dor e incredulidade à sua volta. Quantos sonhos destruiu nesse instante, meu capitão. Não fossem as lágrimas a dançar nos seus olhos e eu ter-lhe-ia atirado com uma frase das mais vernáculas que usávamos na caserna. A raiva de tanto trabalho tido, cooperante, esforçado, para ser dos primeiros classificados do curso e, assim, escapar à mobilização, colhia o desconsolo da inutilidade. A Pátria que a escola e o exército haviam esculpido dentro de mim quebrava-se fragorosamente e ganhava contornos de madrasta. Pois, estávamos em guerra. E depois? Jovens dos quatro cantos do país partiam para longe, perante a dor das famílias. E depois? Isso só devia acontecer aos outros. Não a mim, com três anos de tropa em cima do lombo. Estava já tão convencido de escapar! Até já tinha marcado casamento para o Outono próximo. E agora? Dois anos, meu capitão, dois anos. Isso acaba-me com a vida. Porque tenho de ser eu a ir para África, meu capitão? Porreiro. Com tanta gente por aí e calha-me a mim defender a Pátria. Deixe-se disso, meu capitão. A Pátria sou eu e os outros. Não há Pátria sem gente, meu capitão. Mate o meu capitão toda a gente e não terá mais Pátria. Acabou.-se. Dentro de mim também estavam a acabar muitas coisas. E os meus estudos, meu capitão? Você sabe que eu ainda não acabei o meu curso. Bolas! Mesmo regressando direitinho, meu capitão, quem é que vai ter pachorra para continuar os estudos aos vinte e seis anos? Vou perder o ritmo, o hábito. Isto não está certo, meu capitão. Você está a destruir a minha credibilidade na justiça, meu capitão… Fiquei ali, ao seu lado, esparramado na cadeira, desconjuntada como eu. Os pensamentos eram um turbilhão. Mas invisíveis e pouco claros. Misturavam-se, amalgamados pela raiva. Pastosos, não chegavam ao fim lógico. Saltavam uns por cima dos outros, cabritos loucos a espernear. Dentro dum curral do qual queriam escapar-se. E agora? Como ia eu chegar a casa e dizer que todos os planos recentemente arquitectados não iam poder ser realizados? E a mãe? Há três anos a viver a angústia duma notícia que ia chegar quando já não era esperada? Como é que um filho amplia no coração duma mãe, até aos limites do insuportável e limitando a dor, o medo imenso duma perda irreparável? De repente, a minha geração aparecia-me como uma procissão de fantasmas. Visíveis mas materialmente inexistentes. Desprovidos de vontade. Vogando no espaço da Pátria ao sabor dos ventos. Da história, dizia-se. Quando me levantei da cadeira, meu capitão, senti o seu olhar de soslaio, entristecido, a prescrutar cada um dos meus gestos. A tentar antever o que eu faria. Não valia a pena, meu capitão. Dentro de mim a única vontade existente era a de não fazer nada. Queria que o tempo corresse. Que o dia acabasse, como o subconsciente espera, em alvoroço, o fim do pesadelo. Queria apenas que os dias, que todos os meus dias do futuro na altura prescrutável , acabassem.
(continua)
Magalhães Pinto
Foste mobilizado. Vais para Ultramar. Não vai nunca saber, meu capitão, quantas coisas destruiu na minha alma. As suas duas frases, secas, sintéticas, ditas assim, à bruta, ecoaram na minha alma como uma bomba atómica, espalhando dor e incredulidade à sua volta. Quantos sonhos destruiu nesse instante, meu capitão. Não fossem as lágrimas a dançar nos seus olhos e eu ter-lhe-ia atirado com uma frase das mais vernáculas que usávamos na caserna. A raiva de tanto trabalho tido, cooperante, esforçado, para ser dos primeiros classificados do curso e, assim, escapar à mobilização, colhia o desconsolo da inutilidade. A Pátria que a escola e o exército haviam esculpido dentro de mim quebrava-se fragorosamente e ganhava contornos de madrasta. Pois, estávamos em guerra. E depois? Jovens dos quatro cantos do país partiam para longe, perante a dor das famílias. E depois? Isso só devia acontecer aos outros. Não a mim, com três anos de tropa em cima do lombo. Estava já tão convencido de escapar! Até já tinha marcado casamento para o Outono próximo. E agora? Dois anos, meu capitão, dois anos. Isso acaba-me com a vida. Porque tenho de ser eu a ir para África, meu capitão? Porreiro. Com tanta gente por aí e calha-me a mim defender a Pátria. Deixe-se disso, meu capitão. A Pátria sou eu e os outros. Não há Pátria sem gente, meu capitão. Mate o meu capitão toda a gente e não terá mais Pátria. Acabou.-se. Dentro de mim também estavam a acabar muitas coisas. E os meus estudos, meu capitão? Você sabe que eu ainda não acabei o meu curso. Bolas! Mesmo regressando direitinho, meu capitão, quem é que vai ter pachorra para continuar os estudos aos vinte e seis anos? Vou perder o ritmo, o hábito. Isto não está certo, meu capitão. Você está a destruir a minha credibilidade na justiça, meu capitão… Fiquei ali, ao seu lado, esparramado na cadeira, desconjuntada como eu. Os pensamentos eram um turbilhão. Mas invisíveis e pouco claros. Misturavam-se, amalgamados pela raiva. Pastosos, não chegavam ao fim lógico. Saltavam uns por cima dos outros, cabritos loucos a espernear. Dentro dum curral do qual queriam escapar-se. E agora? Como ia eu chegar a casa e dizer que todos os planos recentemente arquitectados não iam poder ser realizados? E a mãe? Há três anos a viver a angústia duma notícia que ia chegar quando já não era esperada? Como é que um filho amplia no coração duma mãe, até aos limites do insuportável e limitando a dor, o medo imenso duma perda irreparável? De repente, a minha geração aparecia-me como uma procissão de fantasmas. Visíveis mas materialmente inexistentes. Desprovidos de vontade. Vogando no espaço da Pátria ao sabor dos ventos. Da história, dizia-se. Quando me levantei da cadeira, meu capitão, senti o seu olhar de soslaio, entristecido, a prescrutar cada um dos meus gestos. A tentar antever o que eu faria. Não valia a pena, meu capitão. Dentro de mim a única vontade existente era a de não fazer nada. Queria que o tempo corresse. Que o dia acabasse, como o subconsciente espera, em alvoroço, o fim do pesadelo. Queria apenas que os dias, que todos os meus dias do futuro na altura prescrutável , acabassem.
(continua)
Magalhães Pinto
29.8.07
FRASE DO DIA
PENSAMENTO DO DIA
A GLOBALIZAÇÃO E O PAPEL DOS PALOP
Aqui há meia dúzia de anos, num jantar semi-oficial em Moçambique, tive uma curiosa discussão com uma personalidade importante da cúpula político-económica daquele país. Eneas Comiche, de seu nome. Então, Governador do Banco de Moçambique. Por razões que já nem recordo, fui surpreendido por uma afirmação sua, algo cruenta - tanto mais que eu fazia parte de uma comitiva que se encontrava naquele país a convite do seu Governo. Dizia ele, a certa altura, que a presença dos Portugueses em Moçambique tinha servido apenas para se apoderarem das riquezas do país. O meu orgulho pátrio, ademais de alguém que tinha feito a guerra colonial, sentiu-se beliscado. E não olhando às conveniências, como muitas vezes é meu jeito, perguntei-lhe:
- Então o Senhor Governador acha que os Portugueses não deixaram, em Moçambique, nada, em troca das riquezas de que se apoderaram? As pontes, as estradas, as escolas, as fábricas?…
A sua resposta foi imediata.
- Tudo isso é muito pouco!, continuou ele. Foi o suor dos moçambicanos que construiu todas essas coisas. Olhe, Senhor Doutor, os moçambicanos começam a fazer as contas com as taxas de porto que Vasco da Gama não pagou quando chegou a Moçambique…
Já exaltado no meu brio e já centrado numa ideia que me aferroava o espírito, eu contestei:
- Provavelmente não pagou porque não sabia a quem pagar, se aos vátuas, se aos macondes… Mas afora isso, os Portugueses não terão deixado mais nada?…
Tão duro quanto eu estava indelicadamente sendo, perante o espanto dos comensais que estavam conosco, ele continuou a negar. O que me levou a fazer uma afirmação rotunda, na qual creio quase religiosamente. Disse eu:
- Engana-se Senhor Governador! Os Portugueses deixaram aos Moçambicanos algo precioso. Algo que, daqui a muitos anos, quando o Senhor Governador e eu já não formos vivos, fará deles uma grande Nação. Tal como aconteceu com o Brasil. Os Portugueses fizeram aos Moçambicanos a dádiva suprema da sua Língua. Uma Língua clássica, bonita, eterna, a que os Moçambicanos, tal como acontece com os brasileiros, saberão dar, no futuro, um acento muito seu, que a tornará ainda mais bela. E, sobretudo, que será o elemento central aglutinador deste grande país, quase oito vezes maior do que Portugal Europeu. A Língua Portuguesa, Senhor Governador, será, num futuro não muito longínquo, o abraço de todas as etnias que ainda têm.
O episódio ficou por aí, porque o líder da míssão entendeu por bem, e bem, colocar-lhe um ponto final. Mas a ideia que então exprimi, num arroubo de Portuguesismo sem vergonha, desempoeirado, ciente dos seus erros mas também das suas virtudes, essa ficou-me para sempre. A Língua é, a meu ver, o elemento étnico mais aglutinador de gentes que existe. Mais do que as tradições, as quais se perdem no tempo. Mais do que a vizinhança, que muitas vezes se volta as costas. Mais do que os interesses, que mudam de direcção quase com a frequência do vento.
Extracto de uma conferência com o mesmo título - Magalhães Pinto
(continua amanhã)
OS HERÓIS E O MEDO - 10º fascículo
(continuação)
Naquele dia, o capitão Nascimento mandou chamar o furriel miliciano Mário mais cedo do que o habitual. Mário era uma espécie de braço direito do capitão. Operacional, fora por este escolhido para as tarefas administrativas graças à sua formação na vida civil e ao seu evidente espírito de colaboração em todas as tarefas. Fora escolhido numa espécie de concurso entre vários candidatos. Não muitos. A maior parte dos homens preferia o anonimato das formaturas, na esperança de, assim, melhor evitar o trabalho. Ainda aí, o espírito de orientação estava presente. Dar nas vistas o menos possível era um mandamento para os que esperavam a passagem serena do tempo de serviço. Com o mínimo esforço possível. Como alguém que numa estação ferroviária, sabendo a hora de partida do comboio, conta os cravos de fixação da linha. Não foi, por isso, difícil a Mário ganhar o lugar. Além da boa prova prestada - quase só escrever à máquina e fazer umas operações numa calculadora pré-histórica, daquelas de alavanca - dois, raaac, mais dois, raaac, estrela, raaac - o capitão Nascimento gostara do seu modo de olhar, sem baixar os olhos, numa atitude de franqueza e lealdade. A lealdade era uma qualidade essencial para o posto, dadas as sensibilidades inerentes ao saco azul.
(continua)
Magalhães Pinto
Naquele dia, o capitão Nascimento mandou chamar o furriel miliciano Mário mais cedo do que o habitual. Mário era uma espécie de braço direito do capitão. Operacional, fora por este escolhido para as tarefas administrativas graças à sua formação na vida civil e ao seu evidente espírito de colaboração em todas as tarefas. Fora escolhido numa espécie de concurso entre vários candidatos. Não muitos. A maior parte dos homens preferia o anonimato das formaturas, na esperança de, assim, melhor evitar o trabalho. Ainda aí, o espírito de orientação estava presente. Dar nas vistas o menos possível era um mandamento para os que esperavam a passagem serena do tempo de serviço. Com o mínimo esforço possível. Como alguém que numa estação ferroviária, sabendo a hora de partida do comboio, conta os cravos de fixação da linha. Não foi, por isso, difícil a Mário ganhar o lugar. Além da boa prova prestada - quase só escrever à máquina e fazer umas operações numa calculadora pré-histórica, daquelas de alavanca - dois, raaac, mais dois, raaac, estrela, raaac - o capitão Nascimento gostara do seu modo de olhar, sem baixar os olhos, numa atitude de franqueza e lealdade. A lealdade era uma qualidade essencial para o posto, dadas as sensibilidades inerentes ao saco azul.
(continua)
Magalhães Pinto
28.8.07
FRASE DO DIA
PENSAMENTO DO DIA
ILUSÃO
Magnífica e original ilusão, capturada em novomilenio.inf.br. O admirável é que ainda sabemos muito pouco sobre as reações dos nossos sentidos aos estímulos externos.
Olhe fixamente o ponto negro da imagem da esquerda durante uns 20 a 30 segundos; e, subitamente, olhe o centro do rectângulo em branco da direita. E diga-me o que realmente nele vê.
Olhe fixamente o ponto negro da imagem da esquerda durante uns 20 a 30 segundos; e, subitamente, olhe o centro do rectângulo em branco da direita. E diga-me o que realmente nele vê.
OS HERÓIS E O MEDO - 9º. fascículo
(continuação)
O saco azul, cuidadosamente guardado e administrado pelo capitão Nascimento, não era gordo. Era alimentado, essencialmente, pelo produto da venda dos porcos; pelo valor da lenha para o fogão da Unidade que, atribuída, não chegava a ser consumida; e pela receita da venda dos géneros poupados nas dispensas de fim de semana não contabilizadas. Apesar de magro, o saco dava para muitas coisas. Para pintar o quartel, quando necessário e o Ministério não dava dinheiro, por exemplo. Uma curiosa cumplicidade esta, entre o Ministério e a Unidade. Dir-se-ia ser uma das tradições mais arreigadas do exército. Não havia Unidade prezável onde não houvesse saco azul. Que devia ser do conhecimento de todos. Era impossível a fachada do Quartel aparecer pintada, novinha em folha, sem que ninguém notasse. Mas os custos da pintura não apareciam em lado nenhum. Diziam as más línguas que a casa do capitão Nascimento devia ser irmã gémea do edifício do quartel. Aparecia pintada de novo sempre que o quartel lavava a cara. Mas nunca ninguém provara tal. Nem, provavelmente, havia quem quer que fosse interessado em prová-lo. Se assim acontecia, não era desonesto nos estritos termos do código militar de caserna. Era orientação. A orientação fazia parte da cartilha do militar inteligente. Corria todos os postos. O soldado eximia-se à limpeza das latrinas. Era orientação. O cabo conseguia surripiar uma cara de porco aos géneros do rancho. Era orientação. O sargento furava a escala da guarda ao quartel, de modo a escapar a um fim de semana de serviço. Era orientação. O oficial de dia escapava-se noite alta para o exterior, para visitar a amante de ocasião. Era orientação. O capitão Nascimento enchia o saco azul. Era orientação. Aparentemente, só o comandante da Unidade não se orientava. A não ser que fosse orientação chegar quase ao meio-dia e partir ainda a tarde ia alta. No vocabulário dos militares de todas as graduações, a falta de capacidade para se orientar era sinónimo de estupidez. Indivíduo desorientado era mesmo objecto de chacota. O Regimento, as Companhias, os Pelotões, dividiam-se em duas grandes classes. A dos orientados e a dos desorientados. Com uma gigantesca, aglutinadora, cumplicidade a servir de bússola aos primeiros.
(continua)
Magalhães Pinto
O saco azul, cuidadosamente guardado e administrado pelo capitão Nascimento, não era gordo. Era alimentado, essencialmente, pelo produto da venda dos porcos; pelo valor da lenha para o fogão da Unidade que, atribuída, não chegava a ser consumida; e pela receita da venda dos géneros poupados nas dispensas de fim de semana não contabilizadas. Apesar de magro, o saco dava para muitas coisas. Para pintar o quartel, quando necessário e o Ministério não dava dinheiro, por exemplo. Uma curiosa cumplicidade esta, entre o Ministério e a Unidade. Dir-se-ia ser uma das tradições mais arreigadas do exército. Não havia Unidade prezável onde não houvesse saco azul. Que devia ser do conhecimento de todos. Era impossível a fachada do Quartel aparecer pintada, novinha em folha, sem que ninguém notasse. Mas os custos da pintura não apareciam em lado nenhum. Diziam as más línguas que a casa do capitão Nascimento devia ser irmã gémea do edifício do quartel. Aparecia pintada de novo sempre que o quartel lavava a cara. Mas nunca ninguém provara tal. Nem, provavelmente, havia quem quer que fosse interessado em prová-lo. Se assim acontecia, não era desonesto nos estritos termos do código militar de caserna. Era orientação. A orientação fazia parte da cartilha do militar inteligente. Corria todos os postos. O soldado eximia-se à limpeza das latrinas. Era orientação. O cabo conseguia surripiar uma cara de porco aos géneros do rancho. Era orientação. O sargento furava a escala da guarda ao quartel, de modo a escapar a um fim de semana de serviço. Era orientação. O oficial de dia escapava-se noite alta para o exterior, para visitar a amante de ocasião. Era orientação. O capitão Nascimento enchia o saco azul. Era orientação. Aparentemente, só o comandante da Unidade não se orientava. A não ser que fosse orientação chegar quase ao meio-dia e partir ainda a tarde ia alta. No vocabulário dos militares de todas as graduações, a falta de capacidade para se orientar era sinónimo de estupidez. Indivíduo desorientado era mesmo objecto de chacota. O Regimento, as Companhias, os Pelotões, dividiam-se em duas grandes classes. A dos orientados e a dos desorientados. Com uma gigantesca, aglutinadora, cumplicidade a servir de bússola aos primeiros.
(continua)
Magalhães Pinto
SORRISO DO DIA
27.8.07
PENSAMENTO DO DIA
Apesar da litania de elogios da "inteligência" alfacinha, o funeral de Eduardo Prado Coelho foi acompanhado por pouco mais de uma centena de pessoas. O que mostra quanto mal-amado era em vida. A minha mãe, anónima enfermeira de província, foi acompanhada em situação idêntica, pelo menos pelo triplo...
FRASE DO DIA
CRÓNICA DA SEMANA
Um dos direitos das pessoas é serem indemnizadas quando alguém lhes causa um prejuízo com a sua acção voluntária ou involuntária. E acontece mesmo que se os prejuízos são causados voluntariamente, quem os causa incorre em crime. As sociedade modernas e civilizadas têm neste princípio um dos seus equilíbrios mais importantes. Aliás, ainda há bem pouco tempo, o Senhor Presidente da República censurou quem tinha danificado propriedade alheia, a propósito da destruição de uma plantação de milho transgénico.
Sendo o Estado o conjunto dos cidadãos devidamente organizados numa estrutura de poder, não é possível isentá-lo daquela responsabilidade de indemnizar. O Estado actua em nome de todos os cidadãos perante cada um deles. E não é preciso estudar nas faculdades para reconhecer que, se o Estado causa um prejuízo a um qualquer cidadão, são todos os cidadãos que o estão a fazer. E, porque revestido de um poder especial perante cada um dos cidadãos, a responsabilidade do Estado é maior do que a do indivíduo. Isto é, cada um de nós só estará justamente protegido perante a força do Estado se tiver a possibilidade de, nos tribunais, exigir compensações para prejuízos causados por ele, por actuação sua negligente ou dolosa. Na falta dessa obrigação, o indivíduo fica sujeito às maiores arbitrariedades do Poder, sem que este tenha nada a temer.
Pois bem. Reconhecendo isso, os deputados da Assembleia da República aprovaram uma lei para regular a responsabilidade civil do Estado pelos seus actos e decisões. Bem hajam por isso. Ao fazê-lo, os deputados estavam a honrar a Democracia e a dar aos cidadãos um instrumento de defesa imprescindível perante o Poder arbitrário do Estado. E, como todas as leis, esta tinha que ser promulgada pelo Senhor Presidente da República. O qual, numa atitude irreconhecível, a vetou e devolveu ao Parlamento. Não hesito em classificar de iníqua esta decisão do Presidente da República, ele, que jurou defender a Constituição Portuguesa na qual o direito dos cidadãos à Justiça está consagrado.
Para cúmulo desta decisão inaudita e inaceitável do Presidente da República, são usados dois argumentos disparatados. “Que são todos os contribuintes que pagam as indemnizações em que o Estado incorra” é uma delas. Isto é, para Cavaco Silva deve ser um só cidadão a suportar os prejuízos causados injustamente pelo Estado, isto é, por todos os outros cidadãos. “E isto ia entupir os tribunais com processos” é o outro argumento. Isto é, e também para ele, que se lixe a Justiça desde que os tribunais funcionem. Mas se não há Justiça para que são precisos os tribunais?
Resta uma esperança. Que os deputados por nós eleitos honrem o nosso voto, aprovando de novo o diploma legal e forçando o Presidente da República a promulgá-lo.
Crónica IRRECONHECÍVEL - Magalhães Pinto - "MATOSINHOS HOJE" - 28/8/2007
OS HERÓIS E O MEDO - 8º. fascículo
(continuação)
O capitão Nascimento era o chefe dos serviços administrativos da Unidade. Para além de providenciar as contas necessárias à verificação dos pressupostos orçamentais, tinha a seu cuidado a agro-pecuária, na qual punha todo o seu orgulho. Os porcos e as galinhas, eram o seu encanto. Sobretudo os porcos. Alentejano, devia encontrar aí o sempre desejado regresso às origens de qualquer ser humano a aproximar-se do fim. Era engraçado vê-lo a dar instruções ao cabo Sousa, lateiro como ele, seguramente futuro capitão também, sobre a alimentação da "Reca", quando esta estava prenhe. Quase chorava se algum leitão morria antes do tempo. E não era pelo prejuízo. Por muito cioso que o capitão Nascimento fosse do saco azul da Unidade. Era como se cada porco fizesse parte da sua grande família. Uma família feita de rostos sem fim, passados pela Unidade. Alguns quase sem tempo para se lhes aprender o número, logo tragados pelos batalhões de partida para África. Quando acontecia o mobilizado ser um dos seus subordinados mais directos, o velho capitão lá encontrava uns tostões no fundo do saco azul para lhe oferecer uma esferográfica reluzente. É para não te esqueceres de escrever à família todas as semanas, dizia. E lá se ia o produto de uma perna de porco sobrante do rancho.
(continua)
Magalhães Pinto
O capitão Nascimento era o chefe dos serviços administrativos da Unidade. Para além de providenciar as contas necessárias à verificação dos pressupostos orçamentais, tinha a seu cuidado a agro-pecuária, na qual punha todo o seu orgulho. Os porcos e as galinhas, eram o seu encanto. Sobretudo os porcos. Alentejano, devia encontrar aí o sempre desejado regresso às origens de qualquer ser humano a aproximar-se do fim. Era engraçado vê-lo a dar instruções ao cabo Sousa, lateiro como ele, seguramente futuro capitão também, sobre a alimentação da "Reca", quando esta estava prenhe. Quase chorava se algum leitão morria antes do tempo. E não era pelo prejuízo. Por muito cioso que o capitão Nascimento fosse do saco azul da Unidade. Era como se cada porco fizesse parte da sua grande família. Uma família feita de rostos sem fim, passados pela Unidade. Alguns quase sem tempo para se lhes aprender o número, logo tragados pelos batalhões de partida para África. Quando acontecia o mobilizado ser um dos seus subordinados mais directos, o velho capitão lá encontrava uns tostões no fundo do saco azul para lhe oferecer uma esferográfica reluzente. É para não te esqueceres de escrever à família todas as semanas, dizia. E lá se ia o produto de uma perna de porco sobrante do rancho.
(continua)
Magalhães Pinto
26.8.07
ENIGMA DE FIM DE SEMANA
Uma bactéria cai numa piscina e forma uma mancha à superfície. Devido à multiplicação das bactérias, todos os dias duplica o seu número e, consequentemente, todos os dias duplica o tamanho da mancha. Ao fim de trinta dias, toda a piscina fica coberta pela mancha. Já não me recordo ao fim de quanto tempo estava meia piscina coberta pela mancha. Pode ajudar-me?
PERGUNTAS SEM RESPOSTA
OS HERÓIS E O MEDO - 7º. fascículo
(continuação)
O velho capitão Nascimento era, em puros termos da gíria, um “casca-grossa”. Os militares no serviço obrigatório, recrutados à força de lei, costumavam chamar lateiros aos profissionais. Numa depreciativa associação da carreira à marmita de alumínio, companheira de todas as marchas e acampamentos. O “casca-grossa” tinha percorrido a passo todos os postos que distanciam o cabo do capitão. Gastara uma vida nisso. Já devia estar na reserva. Mas, num tempo em que todos os oficiais do quadro eram poucos, face à guerra nos territórios coloniais, a Pátria aproveitava dos mais velhos para cobrirem as necessidades burocráticas de casa. Oficiais como o capitão Nascimento eram as empregadas domésticas duma casa em reboliço. Rosto redondo e figura anafada por anos de feijoadas, faces rosadas do tinto vindo da propriedade herdada no monte original, despertava alguma ternura. À superfície, guardava ainda um aparente ar de disciplina. Mas, no fundo dos pequenos olhos vivazes, havia um brilho de bondade, especialmente quando falava para os "rapazes" acabados de incorporar. Costumava dizer-se confrangido por ver tanta carne para canhão, enquanto afagava com o dedo indicador o lábio superior, geralmente povoado de borbulhas de suor. Nunca se lhe ouvira uma palavra contra a guerra colonial. E, no entanto, era perceptível não morrer de amores por ela. O serviço em África, ao tempo do incêndio mundial dos idos de quarenta, não imprimira nele a magia do negro continente. Pelo menos, de modo suficiente para abençoar a partida de outros.
(continua)
Magalhães Pinto
O velho capitão Nascimento era, em puros termos da gíria, um “casca-grossa”. Os militares no serviço obrigatório, recrutados à força de lei, costumavam chamar lateiros aos profissionais. Numa depreciativa associação da carreira à marmita de alumínio, companheira de todas as marchas e acampamentos. O “casca-grossa” tinha percorrido a passo todos os postos que distanciam o cabo do capitão. Gastara uma vida nisso. Já devia estar na reserva. Mas, num tempo em que todos os oficiais do quadro eram poucos, face à guerra nos territórios coloniais, a Pátria aproveitava dos mais velhos para cobrirem as necessidades burocráticas de casa. Oficiais como o capitão Nascimento eram as empregadas domésticas duma casa em reboliço. Rosto redondo e figura anafada por anos de feijoadas, faces rosadas do tinto vindo da propriedade herdada no monte original, despertava alguma ternura. À superfície, guardava ainda um aparente ar de disciplina. Mas, no fundo dos pequenos olhos vivazes, havia um brilho de bondade, especialmente quando falava para os "rapazes" acabados de incorporar. Costumava dizer-se confrangido por ver tanta carne para canhão, enquanto afagava com o dedo indicador o lábio superior, geralmente povoado de borbulhas de suor. Nunca se lhe ouvira uma palavra contra a guerra colonial. E, no entanto, era perceptível não morrer de amores por ela. O serviço em África, ao tempo do incêndio mundial dos idos de quarenta, não imprimira nele a magia do negro continente. Pelo menos, de modo suficiente para abençoar a partida de outros.
(continua)
Magalhães Pinto
FRASE DO DIA
EDUARDO PRADO COELHO
PENSAMENTO DO DIA
Ao vetar a lei da responsabilidade civil extra-contratua do Estado, o Presidente da República praticou o acto mais iníquo dos poderes públicos dos últimos tempos. Demais, com um argumento a roçar a estupidez: "porque são os contribuintes que, em última análise, suportam os respectivos custos". Ou seja, Cavaco Silva entende que um só contribuinte deverá arcar com as consequências prejudiciais de um exercício de poder cuja responsabilidade pertence a todos. Pior era impossível!
(imagem de wehavekaosinthegarden.blogspot.com)
(imagem de wehavekaosinthegarden.blogspot.com)
25.8.07
PENSAMENTO DO DIA
PERGUNTAS SEM RESPOSTA
OS HERÓIS E O MEDO - 6º. fascículo
(continuação)
OS HERÓIS E O MEDO
I
Não sei porque me vem esta vontade enorme de reviver o passado. Em realidade virtual. Numa realidade inexistente a não ser dentro de mim. Mas nem por isso menos dolorosa. É como se quisesse a expiação dos actos pelo avivar das chagas por eles deixados. É como se quisesse apagar os sulcos da tragédia vivida com o arado da memória. É como se a consciência pesada trazida pela idade quisesse encontrar refúgio na inocência do menino sido. Ainda que sinta ter a culpa pertencido a outras vontades. De nada serve, porém, o alijar da culpa se sabemos ter sido o instrumento de vontade alheia. Haverá alguma diferença entre ser vontade ou instrumento dessa vontade? Gostava de voltar atrás e emendar tudo. Como se o passado tivesse emenda alguma vez! Como se o passado fosse uma banalidade escrita a lápis, que qualquer borracha pudesse safar! Ia ser bonito, se fosse. A maior parte das pessoas gastaria a borracha antes do lápis. A simples possibilidade de apagar tornar-nos-ia menos cuidados na escritura da vida. Assim, ainda que hoje eu possa pensar poderem ter sido as coisas bem diferentes - bastava ter conseguido escudar a alma contra os acontecimentos que a endureceram - pelo menos me fica a ideia de ter tido algum cuidado. Que não chegou para evitar a tragédia. Mas chegou para conservar o desejo de expiação. Uma suave expiação, que o tempo se encarrega de tornar menos vivas as dores permanentes. As recordações são como os traços a dividir uma estrada. Ora contínuas, ora intermitentes. Progressivamente apagadas, tanto mais quanto maior é o trânsito dos acontecimentos. Pisadas, esquecidas, em cada curva mais apertada da vida. De longe a longe, espevitadas. Eu quero espevitar as minhas hoje. Não me trará grande benefício, a espevitadela. Mas espero bem que, ao fazê-lo, fique melhor delimitada a trajectória dos eventos na origem dos meus remorsos.
(continua)
Magalhães Pinto
FRASE DO DIA
"Porque não permitir aos Portugueses a descarga dos livros escolares para os computadores?" (na sequência das multas da ASAE aos especuladores com livros escolares)
José Vegar (jornalista e escritor) - "SIC NOTÍCIAS" - 25/8/2007
***
É capaz de não ser má ideia... Os editores e livreiros fariam cair o Governo!....
24.8.07
PENSAMENTO DO DIA
FRASE DO DIA
OS HERÓIS E O MEDO - 5º. fascículo
(continuação)
Mas há mais. Aos homens que fizeram a Guerra Colonial foram pedidos sacrifícios incontáveis. Mal preparados, mal equipados, mal alimentados, mal alojados, com uma logística militar apenas sofrível, esses homens disponibilizaram – para utilizar uma frase feita de bélico sabor – sangue, suor e lágrimas sem conta. Sofreram na pele as dores da metralha e no espírito o pavor do medo. Um medo que sempre sobrelevaram. Que dominaram. Para dele partirem para tantos actos de heroísmo, de fraternidade, de solidariedade. De uma solidariedade não esgotada no companheiro de armas e que, muitas vezes, tinha as populações locais por objecto. Fizeram-no sem esperar agradecimentos. Mas também não esperavam o insulto do labéu, a ofensa do esquecimento. Se foi possível, a Portugal, voltar a África e aos territórios libertados, escassa meia dúzia de anos depois do fim da guerra, a esses homens e ao seu comportamento se fica a dever.
Por tudo isso, para que os filhos e netos dos soldados que fizeram a Guerra Colonial saibam que os seus pais e avós foram heróis autênticos, amantes da Pátria, homens bons preocupados com os seus compatriotas, geralmente sem um átomo de racismo a toldar-lhes o espírito, foi escrito este livro. Que fiquem a saber que eles, os seus pais e avós, tal como tantos outros feitores das mais belas páginas da nossa História, fazem jus à seguinte expressão, sem qualquer pudor, nesta circunstância, roubada aos lugares comuns da ditadura:
“Ditosa Pátria que tais filhos tem”
O autor
(continua)
Magalhães Pinto
SORRISO DO DIA
23.8.07
MEMÓRIA
A minha crónica de hoje é dolorosa. Porque se me apresenta como inevitável falar da declaração mais bombástica da semana que findou. "Cavaco Silva é o pai do monstro". Autoria atribuída a Miguel Cadilhe. E é dolorosa porque, ao comentar esta afirmação - de potenciais reflexos políticos relevantes - tenho que envolver no comentário duas pessoas que admiro e respeito. Uma admiração e respeito que me levaram a fazer, a determinada altura da minha vida, sacrifícios pessoais de monta, para poder cooperar, com um e com outro, na perseguição daquilo que me parecia - tal como a eles - ser o melhor para o meu país. A pedido de Miguel Cadilhe, então Secretário de Estado do Orçamento, fui representante do Governo no Conselho Nacional do Plano, numa altura (1980) em que era necessário eliminar as sequelas da loucura post-revolucionária e lançar o país na senda do progresso económico, abalado pela quase bancarrota a que havíamos chegado. E ali defendi os seus Orçamentos com unhas e dentes. Defesa que se prolongou mais tarde quando, já com Miguel Cadilhe a Ministro das Finanças, ele deu um contributo decisivo para a agilização económica do país e para a sua modernização. A pedido de Cavaco Silva, fui membro da Comissão Política Nacional do PSD, numa ocasião (1989) em que era necessário lançar o país na senda de progresso que a adesão à Comunidade Europeia o exigia e justificava. E ali não lhe recusei o apoio de que necessitava para promover o desenvolvimento do país. Curiosamente, creio ser inegável que ambos os objectivos foram conseguidos. Disso e de alguns outros factores mais, ficou a minha admiração profunda por dois portugueses de qualidade, cujo conttributo para o Portugal moderno é dos mais significativos.
Em primeiro lugar, o Miguel Cadilhe revelado pela afirmação que lhe é atribuída é substancialmente diferente daquele cuja imagem vivia em mim. Junto dele, atravessei profissionalmente o período post-revolucionário e pude, muito de perto, conhecer a sua enorme coragem. Não hesitou em dizer, num tempo em que isso poderia custar amargos de boca profundos, que o rei revolucionário ia nu. O número sete de uma criação bimestral sua - o boletim "Conjuntura", do BPA - foi distribuído na Assembleia do MFA, por mostrar, poderosamente, o abismo para o qual corríamos. E se houve tentativas de apreensão desse boletim, por parte das forças ultra-progressistas de então, também ficou a sensação de que serviu ao despertar das consciências mais moderadas e, porventura, terá dado um contributo não dispiciendo para o "25 de Novembro". Além disso, Miguel Cadilhe afirmava-se publicamente por bater o pé, com firmeza, a todas as anunciadas decisões que lhe pareciam prejudiciais. Isto é, este Miguel Cadilhe, de que guardo a imagem, teria, face a uma atitude de Cavaco Silva que, em seu entender, estivesse na origem do surgimento de um "monstro" financeiro, apresentado imediatamente a sua demissão. E não se calaria. Esse Miguel Cadilhe, de que guardo a imagem, não tinha chefes, entendia não dever obediência ao erro. Todavia, calou-se. E calou-se durante quinze anos. E calou-se quando Cavaco Silva chegou aos píncaros mediáticos com o seu artigo "O Monstro", pela primeira vez denunciando - já lá vão mais de três anos! - o atoleiro que nos esperava. Fazê-lo agora, quando o poder cai nas mãos dos socialistas, tem um insustentável odor a oportunismo. Odor que a minha estima pessoal e o meu apreço pelas suas especiais capacidades profissionais se recusam a aceitar. Mas que, todavia, está aparentemente lá.
Miguel Cadilhe esquece um factor importante ao fazer a sua denúncia. Quando o novo sistema retributivo da função pública foi lançado, Portugal vivia o seu período post-revolucionário mais progressivo, do ponto de vista económico e financeiro. A justificar que todos partilhassem da maior riqueza criada, incluindo os funcionários públicos. Naturalmente, exigindo-lhes uma maior produtividade, como Miguel Cadilhe terá acertadamente recomendado. De 1985 a 1992, Portugal conhece um grande salto no seu desenvolvimento. Apenas interrompido em 1993 e 1994 devido a uma crise económica internacional reconhecida e inegável, da qual Portugal se ressentiu duramente. O timoneiro do país, nesse período foi Cavaco Silva. O qual se afastou - não foi afastado - da governação, é necessário não o esquecer também, porque alguns dos membros do seu Governo se envolveram ou se deixaram envolver em actos menos lícitos ou simplesmente não transparentes, que acarretaram o descrédito do Governo como um todo e, pior do que isso, deram aso a que a Comunicação Social tivesse pasto farto para tasquinhar as suas pequenas novelas. Todavia, nem por um momento, nem numa só ocasião, Cavaco Silva foi salpicado pela lama que saltava das rodas da carruagem. Algo de que nem todas as grandes figuras do regime e muitos dos que o criticam podem gabar-se.
E aquele esquecimento de Cadilhe só não é grave, num homem de brilhante memória como ele é, porque ele tem outros esquecimentos por igual graves. Miguel Cadilhe esquece o rendimento mínimo, fabricante nacional de mais preguiçosos do que o sol de Agosto. Miguel Cadilhe esquece o EURO/2004, de que foi maior obreiro precisamente um governo que não era de Cavaco Silva, com especial relevo para o actual Primeiro-Ministro. Miguel Cadilhe esquece o despautério dos gastos com o PORTO/2001, incluindo a Casa da Música, atribuível a esse inefável Manuel Carrilho e ao afastamento por ele provocado desse gestor de eleição que é Artur Santos Silva. Dessa não é Cavaco Silva pai. Miguel Cadilhe esquece as SCUTS gratuitas que não são devidas a Cavaco Silva. Este resistiu às pressões algarvias que queriam a A2 gratuita e viu decrescer os seus índices de popularidade quando resistiu na Ponte 25 de Abril a quem queria - e conseguiu - pagar menos, com alguns bónus por acréscimo. Miguel Cadilhe esquece o verdadeiro forrobodó de admissões na função pública posteriores a Cavaco Silva. Forrobodó que, aliás, continua. Principalmente nas autarquias, mas não só. Confrontada com falta de pessoal nos museus, a Senhora Ministra da Cultura de um governo que não é de Cavaco Silva, anuncia a admissão de quase duzentos e cinquenta novos funcionários, em lugar de os procurar onde já existem a mais. Miguel Cadilhe esquece as sucessivas pontes da função pública durante os governos socialistas, a criarem a falsa noção de que não era necessário trabalhar duro. Miguel Cadilhe esquece o facilitismo fiscal dos socialistas, a promover subrepticiamente o aumento da evasão fiscal até aos níveis insuportáveis que hoje assume. Miguel Cadilhe esquece o descalabro das despesas com a Saúde posterior aos governos de Cavaco Silva. Esquece o totonegócio. Como o rol já vai longo! E poderíamos continuar.
São esquecimentos a mais, para Miguel Cadilhe. A ponto de a minha razão se recusar a aceitar que ele quis dizer o que a Comunicação Social transmitiu. Atitude que encontra reforço em algo que ele disse e que a mesma Comunicação Social não teve em conta ao construir os seus títulos. Transcrevo. "O NSR (novo sistema retributivo da função pública) foi uma demonstração de como uma importante e justa reforma pode ficar a meio do caminho, derrapar e virar-se contra o reformador". Sublinho o "uma importante e justa reforma". Aqui a poder fazer do que disse Cadilhe um alerta para os actuais mágicos da governação, no sentido de que apenas boas intenções não chegam. O que é algo bem diferente de atribuir a paternidade do "monstro" a Cavaco Silva. Mas, se foi isto que Miguel Cadilhe quis dizer, então foi politicamente muito ingénuo, outra vez. É que ele tinha a obrigação de saber, sobretudo depois de tudo quanto a ele aconteceu, sobretudo depois de ver muito do que disse, enquanto foi Ministro, distorcido pela Comunicação Social, que esta ia retirar as suas afirmações do contexto e publicar apenas aquilo que poderia ser notícia. E ribombante. E consequente. Por isso devendo ser dito com muito mais cuidado.
Se o que Miguel Cadilhe quis dizer foi isto, então impõe-se que venha a público denunciar a abusiva interpretação feita do seu discurso. Se não foi, não vejo como é que o odor a oportunismo e ofensa ao sentido de justiça e imparcialidade pode desaparecer do que disse. Como quer que seja, não é difícil prognosticar que Miguel Cadilhe será uma das personalidades centrais da próxima campanha eleitoral presidencial. Na qual será imensamente citado para justificar a atribuição a Cavaco Silva da paternidade do "monstro". O que será, em si mesmo, uma monstruosidade.
Crónica A PATERNIDADE DO MONSTRO - Magalhães Pinto - "VIDA ECONÓMICA" - 28/5/2005
Em primeiro lugar, o Miguel Cadilhe revelado pela afirmação que lhe é atribuída é substancialmente diferente daquele cuja imagem vivia em mim. Junto dele, atravessei profissionalmente o período post-revolucionário e pude, muito de perto, conhecer a sua enorme coragem. Não hesitou em dizer, num tempo em que isso poderia custar amargos de boca profundos, que o rei revolucionário ia nu. O número sete de uma criação bimestral sua - o boletim "Conjuntura", do BPA - foi distribuído na Assembleia do MFA, por mostrar, poderosamente, o abismo para o qual corríamos. E se houve tentativas de apreensão desse boletim, por parte das forças ultra-progressistas de então, também ficou a sensação de que serviu ao despertar das consciências mais moderadas e, porventura, terá dado um contributo não dispiciendo para o "25 de Novembro". Além disso, Miguel Cadilhe afirmava-se publicamente por bater o pé, com firmeza, a todas as anunciadas decisões que lhe pareciam prejudiciais. Isto é, este Miguel Cadilhe, de que guardo a imagem, teria, face a uma atitude de Cavaco Silva que, em seu entender, estivesse na origem do surgimento de um "monstro" financeiro, apresentado imediatamente a sua demissão. E não se calaria. Esse Miguel Cadilhe, de que guardo a imagem, não tinha chefes, entendia não dever obediência ao erro. Todavia, calou-se. E calou-se durante quinze anos. E calou-se quando Cavaco Silva chegou aos píncaros mediáticos com o seu artigo "O Monstro", pela primeira vez denunciando - já lá vão mais de três anos! - o atoleiro que nos esperava. Fazê-lo agora, quando o poder cai nas mãos dos socialistas, tem um insustentável odor a oportunismo. Odor que a minha estima pessoal e o meu apreço pelas suas especiais capacidades profissionais se recusam a aceitar. Mas que, todavia, está aparentemente lá.
Miguel Cadilhe esquece um factor importante ao fazer a sua denúncia. Quando o novo sistema retributivo da função pública foi lançado, Portugal vivia o seu período post-revolucionário mais progressivo, do ponto de vista económico e financeiro. A justificar que todos partilhassem da maior riqueza criada, incluindo os funcionários públicos. Naturalmente, exigindo-lhes uma maior produtividade, como Miguel Cadilhe terá acertadamente recomendado. De 1985 a 1992, Portugal conhece um grande salto no seu desenvolvimento. Apenas interrompido em 1993 e 1994 devido a uma crise económica internacional reconhecida e inegável, da qual Portugal se ressentiu duramente. O timoneiro do país, nesse período foi Cavaco Silva. O qual se afastou - não foi afastado - da governação, é necessário não o esquecer também, porque alguns dos membros do seu Governo se envolveram ou se deixaram envolver em actos menos lícitos ou simplesmente não transparentes, que acarretaram o descrédito do Governo como um todo e, pior do que isso, deram aso a que a Comunicação Social tivesse pasto farto para tasquinhar as suas pequenas novelas. Todavia, nem por um momento, nem numa só ocasião, Cavaco Silva foi salpicado pela lama que saltava das rodas da carruagem. Algo de que nem todas as grandes figuras do regime e muitos dos que o criticam podem gabar-se.
E aquele esquecimento de Cadilhe só não é grave, num homem de brilhante memória como ele é, porque ele tem outros esquecimentos por igual graves. Miguel Cadilhe esquece o rendimento mínimo, fabricante nacional de mais preguiçosos do que o sol de Agosto. Miguel Cadilhe esquece o EURO/2004, de que foi maior obreiro precisamente um governo que não era de Cavaco Silva, com especial relevo para o actual Primeiro-Ministro. Miguel Cadilhe esquece o despautério dos gastos com o PORTO/2001, incluindo a Casa da Música, atribuível a esse inefável Manuel Carrilho e ao afastamento por ele provocado desse gestor de eleição que é Artur Santos Silva. Dessa não é Cavaco Silva pai. Miguel Cadilhe esquece as SCUTS gratuitas que não são devidas a Cavaco Silva. Este resistiu às pressões algarvias que queriam a A2 gratuita e viu decrescer os seus índices de popularidade quando resistiu na Ponte 25 de Abril a quem queria - e conseguiu - pagar menos, com alguns bónus por acréscimo. Miguel Cadilhe esquece o verdadeiro forrobodó de admissões na função pública posteriores a Cavaco Silva. Forrobodó que, aliás, continua. Principalmente nas autarquias, mas não só. Confrontada com falta de pessoal nos museus, a Senhora Ministra da Cultura de um governo que não é de Cavaco Silva, anuncia a admissão de quase duzentos e cinquenta novos funcionários, em lugar de os procurar onde já existem a mais. Miguel Cadilhe esquece as sucessivas pontes da função pública durante os governos socialistas, a criarem a falsa noção de que não era necessário trabalhar duro. Miguel Cadilhe esquece o facilitismo fiscal dos socialistas, a promover subrepticiamente o aumento da evasão fiscal até aos níveis insuportáveis que hoje assume. Miguel Cadilhe esquece o descalabro das despesas com a Saúde posterior aos governos de Cavaco Silva. Esquece o totonegócio. Como o rol já vai longo! E poderíamos continuar.
São esquecimentos a mais, para Miguel Cadilhe. A ponto de a minha razão se recusar a aceitar que ele quis dizer o que a Comunicação Social transmitiu. Atitude que encontra reforço em algo que ele disse e que a mesma Comunicação Social não teve em conta ao construir os seus títulos. Transcrevo. "O NSR (novo sistema retributivo da função pública) foi uma demonstração de como uma importante e justa reforma pode ficar a meio do caminho, derrapar e virar-se contra o reformador". Sublinho o "uma importante e justa reforma". Aqui a poder fazer do que disse Cadilhe um alerta para os actuais mágicos da governação, no sentido de que apenas boas intenções não chegam. O que é algo bem diferente de atribuir a paternidade do "monstro" a Cavaco Silva. Mas, se foi isto que Miguel Cadilhe quis dizer, então foi politicamente muito ingénuo, outra vez. É que ele tinha a obrigação de saber, sobretudo depois de tudo quanto a ele aconteceu, sobretudo depois de ver muito do que disse, enquanto foi Ministro, distorcido pela Comunicação Social, que esta ia retirar as suas afirmações do contexto e publicar apenas aquilo que poderia ser notícia. E ribombante. E consequente. Por isso devendo ser dito com muito mais cuidado.
Se o que Miguel Cadilhe quis dizer foi isto, então impõe-se que venha a público denunciar a abusiva interpretação feita do seu discurso. Se não foi, não vejo como é que o odor a oportunismo e ofensa ao sentido de justiça e imparcialidade pode desaparecer do que disse. Como quer que seja, não é difícil prognosticar que Miguel Cadilhe será uma das personalidades centrais da próxima campanha eleitoral presidencial. Na qual será imensamente citado para justificar a atribuição a Cavaco Silva da paternidade do "monstro". O que será, em si mesmo, uma monstruosidade.
Crónica A PATERNIDADE DO MONSTRO - Magalhães Pinto - "VIDA ECONÓMICA" - 28/5/2005
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