Pesquisar neste blogue

28.8.07

OS HERÓIS E O MEDO - 9º. fascículo

(continuação)

O saco azul, cuidadosamente guardado e administrado pelo capitão Nascimento, não era gordo. Era alimentado, essencialmente, pelo produto da venda dos porcos; pelo valor da lenha para o fogão da Unidade que, atribuída, não chegava a ser consumida; e pela receita da venda dos géneros poupados nas dispensas de fim de semana não contabilizadas. Apesar de magro, o saco dava para muitas coisas. Para pintar o quartel, quando necessário e o Ministério não dava dinheiro, por exemplo. Uma curiosa cumplicidade esta, entre o Ministério e a Unidade. Dir-se-ia ser uma das tradições mais arreigadas do exército. Não havia Unidade prezável onde não houvesse saco azul. Que devia ser do conhecimento de todos. Era impossível a fachada do Quartel aparecer pintada, novinha em folha, sem que ninguém notasse. Mas os custos da pintura não apareciam em lado nenhum. Diziam as más línguas que a casa do capitão Nascimento devia ser irmã gémea do edifício do quartel. Aparecia pintada de novo sempre que o quartel lavava a cara. Mas nunca ninguém provara tal. Nem, provavelmente, havia quem quer que fosse interessado em prová-lo. Se assim acontecia, não era desonesto nos estritos termos do código militar de caserna. Era orientação. A orientação fazia parte da cartilha do militar inteligente. Corria todos os postos. O soldado eximia-se à limpeza das latrinas. Era orientação. O cabo conseguia surripiar uma cara de porco aos géneros do rancho. Era orientação. O sargento furava a escala da guarda ao quartel, de modo a escapar a um fim de semana de serviço. Era orientação. O oficial de dia escapava-se noite alta para o exterior, para visitar a amante de ocasião. Era orientação. O capitão Nascimento enchia o saco azul. Era orientação. Aparentemente, só o comandante da Unidade não se orientava. A não ser que fosse orientação chegar quase ao meio-dia e partir ainda a tarde ia alta. No vocabulário dos militares de todas as graduações, a falta de capacidade para se orientar era sinónimo de estupidez. Indivíduo desorientado era mesmo objecto de chacota. O Regimento, as Companhias, os Pelotões, dividiam-se em duas grandes classes. A dos orientados e a dos desorientados. Com uma gigantesca, aglutinadora, cumplicidade a servir de bússola aos primeiros.

(continua)
Magalhães Pinto

Sem comentários: