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25.8.07

OS HERÓIS E O MEDO - 6º. fascículo


(continuação)

OS HERÓIS E O MEDO


I

Não sei porque me vem esta vontade enorme de reviver o passado. Em realidade virtual. Numa realidade inexistente a não ser dentro de mim. Mas nem por isso menos dolorosa. É como se quisesse a expiação dos actos pelo avivar das chagas por eles deixados. É como se quisesse apagar os sulcos da tragédia vivida com o arado da memória. É como se a consciência pesada trazida pela idade quisesse encontrar refúgio na inocência do menino sido. Ainda que sinta ter a culpa pertencido a outras vontades. De nada serve, porém, o alijar da culpa se sabemos ter sido o instrumento de vontade alheia. Haverá alguma diferença entre ser vontade ou instrumento dessa vontade? Gostava de voltar atrás e emendar tudo. Como se o passado tivesse emenda alguma vez! Como se o passado fosse uma banalidade escrita a lápis, que qualquer borracha pudesse safar! Ia ser bonito, se fosse. A maior parte das pessoas gastaria a borracha antes do lápis. A simples possibilidade de apagar tornar-nos-ia menos cuidados na escritura da vida. Assim, ainda que hoje eu possa pensar poderem ter sido as coisas bem diferentes - bastava ter conseguido escudar a alma contra os acontecimentos que a endureceram - pelo menos me fica a ideia de ter tido algum cuidado. Que não chegou para evitar a tragédia. Mas chegou para conservar o desejo de expiação. Uma suave expiação, que o tempo se encarrega de tornar menos vivas as dores permanentes. As recordações são como os traços a dividir uma estrada. Ora contínuas, ora intermitentes. Progressivamente apagadas, tanto mais quanto maior é o trânsito dos acontecimentos. Pisadas, esquecidas, em cada curva mais apertada da vida. De longe a longe, espevitadas. Eu quero espevitar as minhas hoje. Não me trará grande benefício, a espevitadela. Mas espero bem que, ao fazê-lo, fique melhor delimitada a trajectória dos eventos na origem dos meus remorsos.

(continua)

Magalhães Pinto

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