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17.8.07

MEMORIA


É evidente que nem penso que o Dr. Pimenta Machado, Presidente do Vitória de Guimarães, pegou em noventa mil contos da transferência de um jogador e os meteu ao bolso. É necessário termos a perspectiva da realidade e, para o nível de riqueza material daquele Senhor, noventa mil contos seriam um copo de água. Esperemos tranquilamente pela averiguação das autoridades e pelo veredicto da Justiça. Falaremos depois.

Mas, se penso aquilo, suspeito de outra coisa. É que o episódio é apenas uma manifestação superficial das manigâncias que se desenrolam no mundo do futebol. Dos pagamentos colaterais. Das fugas ao Fisco de rendimentos que se constituem como uma grande parcela do produto nacional. Dos mil e um negócios que se desenrolam abaixo da superfície visível das transacções negociais. Das parcerias que se fazem para adquirir – e pagar – milhões e mais milhões pela habilidade de afagar um esférico de couro. Tenho a convicção de que a maior parte dos negócios do futebol são, na sua maior parte, mais clandestinos, mais obescuros, do que o tráfico de droga.

Pensando assim e não tendo pés capazes de afagar o couro, tenho usado as mãos para bater palmas ao esforço que tem vindo a ser desenvolvido pela Polícia Judiciária no sentido de aclarar uma pequena parte desse mundo escondido. É necessário que todos tenhamos a certeza de que o futebol não está a ser usado para actividades menos lícitas ou legítimas e de que o futebol e as suas gentes não são entes privilegiados na nossa vida colectiva. Já basta todo o dinheiro dos Contribuintes que o futebol leva. Seria insuportável que, para além do dinheiro que leva oficialmente, o futebol ainda levasse muito mais sob a forma de impostos que paga. Já uma vez disse aqui. E repito. É inadmissível o tratamento fiscal mais favorável de que os jogadores de futebol beneficiam. Quanto mais se ainda houver evasão fiscal.

Não obstante estas minhas serenas convicções, não pude deixar de ficar estarrecido hoje (dia em que escrevo) pela manhã, ao ouvir, nos órgãos de comunicação social, o Senhor Presidente da Liga de Clubes afirmar, para quem o quis ouvir, mais ou menos isto: “O melhor é as autoridades dizerem imediatamente quem é que anda a ser investigado no mundo de futebol, senão as Ligas podem parar e os estádios para o Euro/2004 não serem construídos”. Uma afirmação levada da breca! Pelo muito que diz ou pretende dizer ou a gente pensa que pretende dizer.

Por momentos sonhei que ouviria, de seguida, o Senhor Procrador Geral da República responder: “Todos.”. Era isso que, enquanto cidadão com uma razoável consciência cívida, razoavelmente cumpridor dos seus deveres para com o Estado, amante da Verdade e da Justiça, eu gostaria de ouvir. Mas, ao contrário do Senhor Presidente da Liga dos Clubes de Futebol, eu não tenho a certeza de ter o direito de saber, por antecipação, o que é que a Polícia anda a investigar. Admito que todos nós temos o direito de não ser investigados sem haver suspeição. Aliás, creio que a ordem correcta é esta: suspeição, investigação, acusação, julgamento, veredicto. E que, até à acusação, as coisas têm que correr em segredo. Ou todos os criminosos se escapariam. Mas o Senhor Presidente da Liga pensa outra coisa. E, como ele é bem mais sabedor do que eu, é capaz de ser ele a ter razão.

Agora o que eu não pude evitar foi de “ouvir” algo diferente do que as palavras, na sua sempre incompleta forma de traduzir a verdade. O que eu realmente ouvi, naquela ameaça inusitada de quem se sente inocente, foi: “Parem com a investigação de quem quer que seja ou nós paramos com o futebol e com a construção dos estádios para o Euro/2004”. Traduzindo em miúdos, o que eu ouvi foi: “Alto ou pára o baile!”. Uma audição, esta, a minha, verdadeiramente insuportável. Especialmente por ser uma ameaça. Não tanto pelas suas consequências. Nomeadamente no que respeita à construção dos estádios. É que, num momento em que a Ministra das Finanças lança mão de todos os recursos para equilibrar o Orçamento e vozes agoirentas já começam a dizer que para o ano é que vai ser o bonito, parar a construção dos estádios seria, seguramente, uma bela ajuda para a atarefada Ministra.

Era bom que o Senhor Presidente da Liga desmentisse a interpretação que a minha audição, porventura distorcida, me fez ouvir nas suas palavras. Bastará para tanto que ele diga algo deste género: “Não investiguem ninguém sem suspeição, mas investiguem todos àcerca de quem haja suspeitas; o fytebol apoia o combate contra a opacidade do mundo do futebol, apoia o combate à evasão fiscal, apoia o combate contra a corrupção (em sentido amplo). E todos nós ficaremos descansados. Mormente o Senhor Procurador Geral da República, que assim não será o único a levar com a paulada desse imenso prejuízo que será a paragem do futebol. Um prejuízo muito maior do que o originado pelas fábricas que vão à falência por não poderem contar com alguns apoios, tornados estes impossíveis pela necessidade de construir estádios de futebol.


Qualquer que seja o desfecho do que para aí vai no destapar do mundo do futebol, uma ideia fica, porém. O futebol – isto é, os seus dirigentes – julgam-se munidos de um poder susceptível de ordenar. Seja essa ordem “Diz-me quem investigas”, seja essa ordem “Não investiguem”. E isto, para além de preocupante, é inadmissível. Há a maior necesidade de provar que os senhores do futebol mandam tanto no país como eu. Ou então o país é deles e o melhor é eu escolher outro país. E esta ideia, que julgo imbuída da dignidade mínima da cidadania, tem que ser partilhada mesmo pela tribo do futebol. Tem que ser defendida por todos que, antes de serem do Benfica, do Porto, do Sporting ou do Carcavelos, são cidadãos portugueses. Conscientes de que o mínimo do que lhes é devido é que não haja uns de primeira e outros de segunda. Não é – ao contrário do que me pareceu ver em alguns apoiantes do Dr. Pimenta Machado nas suas intervenções públicas – a honra deste ultimo que está em causa. É a sua própria. É a necessidade de exigência de todos nós em relação aos demais para que se portem com correcção, para que não fujam aos impostos, para que cumpram com aquilo que, antes de ser legal, tenha que ser legítimo. E operações escondidas ao lidar com dinheiros alheios não devem ser permitidas a ninguém. E impostos devidos e não pagos não devem ser permitidos a ninguém. E ameaças, mais ou menos veladas, tendentes a abafar o caminho da Verdade e da Justiça, não devem ser permitidas a ninguém. Somos todos cidadãos de um mesmo país. Todos temos os mesmos direitos. E todos temos os mesmos deveres, se é que aqueles situados em maiores níveis de responsabilidade não têm ainda mais deveres. Deste cantinho que partilho, semana a semana, com os meus Leitores, só posso incentivar as autoridades a prosseguirem com as investigações. Folheando até onde e quando as suspeições desapareçam. Sem temor. O futebol não parará. Porque, mesmo que aqui e além algum apodrecimento possa aparecer, há também muita gente de bem no futebol.

Crónica ALTO OU PÁRA O BAILE - Magalhães Pinto - "VIDA ECONÓMICA" - 20/12/2002

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