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30.8.07

OS HERÓIS E O MEDO - 11º. fascículo

(continuação)

Foste mobilizado. Vais para Ultramar. Não vai nunca saber, meu capitão, quantas coisas destruiu na minha alma. As suas duas frases, secas, sintéticas, ditas assim, à bruta, ecoaram na minha alma como uma bomba atómica, espalhando dor e incredulidade à sua volta. Quantos sonhos destruiu nesse instante, meu capitão. Não fossem as lágrimas a dançar nos seus olhos e eu ter-lhe-ia atirado com uma frase das mais vernáculas que usávamos na caserna. A raiva de tanto trabalho tido, cooperante, esforçado, para ser dos primeiros classificados do curso e, assim, escapar à mobilização, colhia o desconsolo da inutilidade. A Pátria que a escola e o exército haviam esculpido dentro de mim quebrava-se fragorosamente e ganhava contornos de madrasta. Pois, estávamos em guerra. E depois? Jovens dos quatro cantos do país partiam para longe, perante a dor das famílias. E depois? Isso só devia acontecer aos outros. Não a mim, com três anos de tropa em cima do lombo. Estava já tão convencido de escapar! Até já tinha marcado casamento para o Outono próximo. E agora? Dois anos, meu capitão, dois anos. Isso acaba-me com a vida. Porque tenho de ser eu a ir para África, meu capitão? Porreiro. Com tanta gente por aí e calha-me a mim defender a Pátria. Deixe-se disso, meu capitão. A Pátria sou eu e os outros. Não há Pátria sem gente, meu capitão. Mate o meu capitão toda a gente e não terá mais Pátria. Acabou.-se. Dentro de mim também estavam a acabar muitas coisas. E os meus estudos, meu capitão? Você sabe que eu ainda não acabei o meu curso. Bolas! Mesmo regressando direitinho, meu capitão, quem é que vai ter pachorra para continuar os estudos aos vinte e seis anos? Vou perder o ritmo, o hábito. Isto não está certo, meu capitão. Você está a destruir a minha credibilidade na justiça, meu capitão… Fiquei ali, ao seu lado, esparramado na cadeira, desconjuntada como eu. Os pensamentos eram um turbilhão. Mas invisíveis e pouco claros. Misturavam-se, amalgamados pela raiva. Pastosos, não chegavam ao fim lógico. Saltavam uns por cima dos outros, cabritos loucos a espernear. Dentro dum curral do qual queriam escapar-se. E agora? Como ia eu chegar a casa e dizer que todos os planos recentemente arquitectados não iam poder ser realizados? E a mãe? Há três anos a viver a angústia duma notícia que ia chegar quando já não era esperada? Como é que um filho amplia no coração duma mãe, até aos limites do insuportável e limitando a dor, o medo imenso duma perda irreparável? De repente, a minha geração aparecia-me como uma procissão de fantasmas. Visíveis mas materialmente inexistentes. Desprovidos de vontade. Vogando no espaço da Pátria ao sabor dos ventos. Da história, dizia-se. Quando me levantei da cadeira, meu capitão, senti o seu olhar de soslaio, entristecido, a prescrutar cada um dos meus gestos. A tentar antever o que eu faria. Não valia a pena, meu capitão. Dentro de mim a única vontade existente era a de não fazer nada. Queria que o tempo corresse. Que o dia acabasse, como o subconsciente espera, em alvoroço, o fim do pesadelo. Queria apenas que os dias, que todos os meus dias do futuro na altura prescrutável , acabassem.

(continua)

Magalhães Pinto

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