A minha crónica de hoje é dolorosa. Porque se me apresenta como inevitável falar da declaração mais bombástica da semana que findou. "Cavaco Silva é o pai do monstro". Autoria atribuída a Miguel Cadilhe. E é dolorosa porque, ao comentar esta afirmação - de potenciais reflexos políticos relevantes - tenho que envolver no comentário duas pessoas que admiro e respeito. Uma admiração e respeito que me levaram a fazer, a determinada altura da minha vida, sacrifícios pessoais de monta, para poder cooperar, com um e com outro, na perseguição daquilo que me parecia - tal como a eles - ser o melhor para o meu país. A pedido de Miguel Cadilhe, então Secretário de Estado do Orçamento, fui representante do Governo no Conselho Nacional do Plano, numa altura (1980) em que era necessário eliminar as sequelas da loucura post-revolucionária e lançar o país na senda do progresso económico, abalado pela quase bancarrota a que havíamos chegado. E ali defendi os seus Orçamentos com unhas e dentes. Defesa que se prolongou mais tarde quando, já com Miguel Cadilhe a Ministro das Finanças, ele deu um contributo decisivo para a agilização económica do país e para a sua modernização. A pedido de Cavaco Silva, fui membro da Comissão Política Nacional do PSD, numa ocasião (1989) em que era necessário lançar o país na senda de progresso que a adesão à Comunidade Europeia o exigia e justificava. E ali não lhe recusei o apoio de que necessitava para promover o desenvolvimento do país. Curiosamente, creio ser inegável que ambos os objectivos foram conseguidos. Disso e de alguns outros factores mais, ficou a minha admiração profunda por dois portugueses de qualidade, cujo conttributo para o Portugal moderno é dos mais significativos.
Em primeiro lugar, o Miguel Cadilhe revelado pela afirmação que lhe é atribuída é substancialmente diferente daquele cuja imagem vivia em mim. Junto dele, atravessei profissionalmente o período post-revolucionário e pude, muito de perto, conhecer a sua enorme coragem. Não hesitou em dizer, num tempo em que isso poderia custar amargos de boca profundos, que o rei revolucionário ia nu. O número sete de uma criação bimestral sua - o boletim "Conjuntura", do BPA - foi distribuído na Assembleia do MFA, por mostrar, poderosamente, o abismo para o qual corríamos. E se houve tentativas de apreensão desse boletim, por parte das forças ultra-progressistas de então, também ficou a sensação de que serviu ao despertar das consciências mais moderadas e, porventura, terá dado um contributo não dispiciendo para o "25 de Novembro". Além disso, Miguel Cadilhe afirmava-se publicamente por bater o pé, com firmeza, a todas as anunciadas decisões que lhe pareciam prejudiciais. Isto é, este Miguel Cadilhe, de que guardo a imagem, teria, face a uma atitude de Cavaco Silva que, em seu entender, estivesse na origem do surgimento de um "monstro" financeiro, apresentado imediatamente a sua demissão. E não se calaria. Esse Miguel Cadilhe, de que guardo a imagem, não tinha chefes, entendia não dever obediência ao erro. Todavia, calou-se. E calou-se durante quinze anos. E calou-se quando Cavaco Silva chegou aos píncaros mediáticos com o seu artigo "O Monstro", pela primeira vez denunciando - já lá vão mais de três anos! - o atoleiro que nos esperava. Fazê-lo agora, quando o poder cai nas mãos dos socialistas, tem um insustentável odor a oportunismo. Odor que a minha estima pessoal e o meu apreço pelas suas especiais capacidades profissionais se recusam a aceitar. Mas que, todavia, está aparentemente lá.
Miguel Cadilhe esquece um factor importante ao fazer a sua denúncia. Quando o novo sistema retributivo da função pública foi lançado, Portugal vivia o seu período post-revolucionário mais progressivo, do ponto de vista económico e financeiro. A justificar que todos partilhassem da maior riqueza criada, incluindo os funcionários públicos. Naturalmente, exigindo-lhes uma maior produtividade, como Miguel Cadilhe terá acertadamente recomendado. De 1985 a 1992, Portugal conhece um grande salto no seu desenvolvimento. Apenas interrompido em 1993 e 1994 devido a uma crise económica internacional reconhecida e inegável, da qual Portugal se ressentiu duramente. O timoneiro do país, nesse período foi Cavaco Silva. O qual se afastou - não foi afastado - da governação, é necessário não o esquecer também, porque alguns dos membros do seu Governo se envolveram ou se deixaram envolver em actos menos lícitos ou simplesmente não transparentes, que acarretaram o descrédito do Governo como um todo e, pior do que isso, deram aso a que a Comunicação Social tivesse pasto farto para tasquinhar as suas pequenas novelas. Todavia, nem por um momento, nem numa só ocasião, Cavaco Silva foi salpicado pela lama que saltava das rodas da carruagem. Algo de que nem todas as grandes figuras do regime e muitos dos que o criticam podem gabar-se.
E aquele esquecimento de Cadilhe só não é grave, num homem de brilhante memória como ele é, porque ele tem outros esquecimentos por igual graves. Miguel Cadilhe esquece o rendimento mínimo, fabricante nacional de mais preguiçosos do que o sol de Agosto. Miguel Cadilhe esquece o EURO/2004, de que foi maior obreiro precisamente um governo que não era de Cavaco Silva, com especial relevo para o actual Primeiro-Ministro. Miguel Cadilhe esquece o despautério dos gastos com o PORTO/2001, incluindo a Casa da Música, atribuível a esse inefável Manuel Carrilho e ao afastamento por ele provocado desse gestor de eleição que é Artur Santos Silva. Dessa não é Cavaco Silva pai. Miguel Cadilhe esquece as SCUTS gratuitas que não são devidas a Cavaco Silva. Este resistiu às pressões algarvias que queriam a A2 gratuita e viu decrescer os seus índices de popularidade quando resistiu na Ponte 25 de Abril a quem queria - e conseguiu - pagar menos, com alguns bónus por acréscimo. Miguel Cadilhe esquece o verdadeiro forrobodó de admissões na função pública posteriores a Cavaco Silva. Forrobodó que, aliás, continua. Principalmente nas autarquias, mas não só. Confrontada com falta de pessoal nos museus, a Senhora Ministra da Cultura de um governo que não é de Cavaco Silva, anuncia a admissão de quase duzentos e cinquenta novos funcionários, em lugar de os procurar onde já existem a mais. Miguel Cadilhe esquece as sucessivas pontes da função pública durante os governos socialistas, a criarem a falsa noção de que não era necessário trabalhar duro. Miguel Cadilhe esquece o facilitismo fiscal dos socialistas, a promover subrepticiamente o aumento da evasão fiscal até aos níveis insuportáveis que hoje assume. Miguel Cadilhe esquece o descalabro das despesas com a Saúde posterior aos governos de Cavaco Silva. Esquece o totonegócio. Como o rol já vai longo! E poderíamos continuar.
São esquecimentos a mais, para Miguel Cadilhe. A ponto de a minha razão se recusar a aceitar que ele quis dizer o que a Comunicação Social transmitiu. Atitude que encontra reforço em algo que ele disse e que a mesma Comunicação Social não teve em conta ao construir os seus títulos. Transcrevo. "O NSR (novo sistema retributivo da função pública) foi uma demonstração de como uma importante e justa reforma pode ficar a meio do caminho, derrapar e virar-se contra o reformador". Sublinho o "uma importante e justa reforma". Aqui a poder fazer do que disse Cadilhe um alerta para os actuais mágicos da governação, no sentido de que apenas boas intenções não chegam. O que é algo bem diferente de atribuir a paternidade do "monstro" a Cavaco Silva. Mas, se foi isto que Miguel Cadilhe quis dizer, então foi politicamente muito ingénuo, outra vez. É que ele tinha a obrigação de saber, sobretudo depois de tudo quanto a ele aconteceu, sobretudo depois de ver muito do que disse, enquanto foi Ministro, distorcido pela Comunicação Social, que esta ia retirar as suas afirmações do contexto e publicar apenas aquilo que poderia ser notícia. E ribombante. E consequente. Por isso devendo ser dito com muito mais cuidado.
Se o que Miguel Cadilhe quis dizer foi isto, então impõe-se que venha a público denunciar a abusiva interpretação feita do seu discurso. Se não foi, não vejo como é que o odor a oportunismo e ofensa ao sentido de justiça e imparcialidade pode desaparecer do que disse. Como quer que seja, não é difícil prognosticar que Miguel Cadilhe será uma das personalidades centrais da próxima campanha eleitoral presidencial. Na qual será imensamente citado para justificar a atribuição a Cavaco Silva da paternidade do "monstro". O que será, em si mesmo, uma monstruosidade.
Crónica A PATERNIDADE DO MONSTRO - Magalhães Pinto - "VIDA ECONÓMICA" - 28/5/2005
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