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19.10.07

OS HERÓIS E O MEDO - 59º. fascículo


(continuação)


VIII

Eram quase todos amadores. Era hábito juntarem-se ali, naquela pequena sala da Madragoa, aos serões, para fazerem o gosto ao dedo e à voz. Contava-se que, em noites de sorte, o Marceneiro também aparecia. Lá pela meia noite, as luzes apagavam-se e a sala ficava iluminada apenas pelas velas. A cumplicidade instalava-se. Um silêncio quase religioso descia sobre a sala, brevemente quebrado pelo dedilhar dos instrumentistas, tangendo os primeiros acordes de afinação entre o violão e a guitarra. O do violão, perna cruzada, segurava permanentemente um cigarro aceso entre os dedos mínimo e o anelar da mão direita, enquanto os restantes dedos acariciavam docemente as cordas. Os bordões, no seu timbre grave, reverberavam na parede de pedra, como se fossem carrilhões a tocar as avé-marias. Os olhares dos circunstantes poisavam, hipnotizados, no cigarro do tocador, procurando adivinhar o momento em que a longa cinza nele pendurada cairia ao chão. O da guitarra era a antítese do outro. Olhos escondidos atrás dum par de óculos de armação de tartaruga e grossas lentes, debruçava-se sobre o instrumento, quase num abraço de amor, baloiçando o corpo ao ritmo das notas suavemente estridentes a soltarem-se do instrumento. Aqui e além, como num orgasmo, as cordas da guitarra gritavam desesperos.

(continua)
Magalhães Pinto

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