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20.10.07

OS HERÓIS E O MEDO - 60º. fascículo

(continuação)

Depois duma guitarrada de aquecimento, começava o desfile das gargantas. Normalmente era a Maria da Glória que começava. Anafada, de idade indefinida, penteada a rigor, lábios grossos a abarrotar vermelhos vivos, em contraste violento com um vestido inteiramente negro a relevar-lhe as carnes em redor da cintura, cantava a história do seu ciúme pelo Zé e do seu ódio pela Rosa. Alguns dedos dos presentes acariciavam os bordos dos copos de vinho. Pressentia-se, nos seus olhos brilhantes, que cada um e cada uma tinham ciúmes de alguém. Debaixo da mesa do canto, um dos fadistas aproveitava para encostar o joelho à perna da companheira de mesa, a qual, com um quase imperceptível sorriso de cumplicidade, separava um pouco mais os joelhos perante o assalto galã. Os aplausos para a fadista demoravam um pouco a fazer-se ouvir, o tempo da transição duma interioridade profunda para a realidade palpável. E ouviam-se alguns murmúrios, enquanto o do violão aproveitava para tirar uma última fumaça do cigarro milagrosamente conservado aceso, apagando-o de seguida no cinzeiro coalhado de beatas e acendendo outro. E outro fadista se seguia. Durante umas boas duas horas, os cantares sucediam-se.

(continua)
Magalhães Pinto

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