(continuação)
Regressados a Lisboa, Rafaela voou para os braços do Zé António. Num intervalo das suas efusões amorosas, contou-lhe do pai. O rapaz quis saber mais. Para que província iria. Quando seria a partida. Iria só ou a comandar um batalhão. Rafaela chegou a brincar com ele e a perguntar-lhe se ele era da Pide. A pergunta desencadeou nele uma violenta reacção. Nunca, ouviste, nunca poderia ser um desses. Polícias malditos que torturam, que matam. Tu sabes de quanto eles são capazes? Sabes o que é aparecerem-te de madrugada em casa e, sem qualquer explicação, levarem-te para o quartel-general deles, onde te desfazem a consciência, o respeito por ti mesmo? Sabes o que é esfacelarem-te a resistência até pedires perdão até pelo que não fizeste? Polvo maldito com milhares de tentáculos compridos como a sua maldade. Com milhares de olhos e ouvidos. Fazendo de cada um de nós ou espião ou espiado. E o pior, Rafaela, é que cada um de nós é culpado das atrocidades por eles cometidas. Nenhum de nós pode eximir-se a essa responsabilidade. Mas eu, Rafaela, eu, pelo menos, luto. E se não fossem homens como o teu pai já há muito tínhamos vencido. Quando este regime acabar e a liberdade voltar, Rafaela, o que vai doer não vai ser a pancada que levámos. O que vai doer, a sério mesmo, vai ser o silêncio do passado. Uma geração inteira sacrificada à defesa dos interesses de meia dúzia de tubarões. A África é dos africanos, Rafaela. Quando lá chegámos, já eles lá estavam. Não me venhas com essa, Rafaela. Cristo é uma boa treta para levar à certa a credulidade do nosso povo. Com a Igreja a ajudar à missa. Mas isto vai acabar um dia, tu verás. A venda vai cair e a mordaça tornar-se-á pó. E o país há-de ser devolvido, de novo, aos trabalhadores. E nós, jovens, temos muito que trabalhar para isso, Rafaela. Com os velhos já não é possível. Estão demasiado habituados à mordaça para a notar. Estão oprimidos há tempo demais para se aperceberem da opressão. Os seus olhos, de tanto tempo vendados já não vêem nem a luz. Deixa os militares, como o teu pai, ficarem cansados da guerra, Rafaela, e verás como serão eles a derrubar o senhor que agora servem. Os militares são os nobres do nosso tempo. Uma casta com privilégios. Tire-lhes o soberano os privilégios e combaterão o soberano. Fazer a guerra não é um privilégio. É o preço de todos os outros. A guerra cansa, Rafaela. Os padres não contam, miúda. A Igreja não faz outra coisa senão navegar à vela. Vê para onde sopra o vento e aproveita-o. É uma boa treta essa duma religião que te manda oferecer a outra face quando te esbofeteiam. É uma boa treta, essa, de reservar um outro mundo para os pobres, deixando os prazeres deste só para os futuros condenados. É neste mundo que quem peca deve ser condenado, Rafaela.
(continua)
Magalhães Pinto
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