Pesquisar neste blogue

24.10.07

OS HERÓIS E O MEDO - 64º. fascículo

(continuação)

Mas uma noite daquele Verão ainda a começar, o Manel apareceu menos alegre do que habitualmente. E não cantaria nessa noite. Fora finalmente mobilizado. Ia para África. Deveria apresentar-se em Santa Margarida daí a nada. A princípio não acreditaram. Pensaram tratar-se de mais uma das habituais petas do Manel. Mas o brilho maroto dos seus olhos desaparecera. E o seu ar continuava grave. Então, pá, zangaste-te com o teu amigo? Puseram o teu nome na lista outra vez? Brincavam com ele, tentando amenizar o desgosto visível. Toma um copo que isso passa. O Manel não estava para brincadeiras. O que não evitou o copo. Os copos. Muitos. Até que o Manel já nem se importava com a mobilização. Nem com nada. Os sinais prenunciadores da embriaguez notavam-se. Noite alta, uma das fadistas, a mais velha, levou-o consigo, algo cambaleantes os dois, rua abaixo, até chegarem ao quarto dela. Despiu-o. Deitou-o na cama de ferro. O Manel adormeceu quase de imediato. Cobriu-o. Afastou-lhe a melena para o lado, num gesto vagaroso carregado de ternura maternal. Deu-lhe um beijo na testa, deixando cair sobre o rosto do rapaz uma lágrima rebelde. O Manel nunca tinha feito amor com ela. E talvez ela não quisesse. Desde que o vira pela primeira vez, o Manel lembrava-lhe o filho, morto muito cedo, num acidente com uma mina durante umas manobras, quando cumpria o serviço militar. E ficou até noite alta, a seu lado, velando o sono do rapaz. Até um orfão tinha direito a uma mãe nas vésperas de partida para a guerra.

(continua)
Magalhães Pinto

Sem comentários: