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27.10.07

OS HERÓIS E O MEDO - 67º. fascículo

(continuação)

Viajaram em direcção ao sul no pequeno automóvel do pai. Em direcção a Estremoz, primeiro. Após o que rumaram ao Algarve, em diagonal. Até Sagres. No promontório, encostado ao muro do miradoiro debruçado sobre o mar, uma ligeira brisa a despentear-lhe os fartos cabelos brancos, António Soveral abraçou a mulher e a filha, cada qual do seu lado. E falou-lhes. António Soveral tinha o dom da palavra e as suas frases tinham o condão de pintar, na imaginação de quem ouvia, quadros indeléveis dos acontecimentos. Dizia a lenda que ali, naquele preciso sítio, o Infante tinha instalado uma escola de formação de marinheiros e outros cientistas da arte de navegar. E que dali tinham partido os Portugueses à descoberta de um mundo escondido por detrás do mar. Fora um tempo de heroicidade. Em que a coragem dos homens tinha vencido o medo e a adversidade. Antes de eles partirem e regressarem, com notícias de novos mundos, Rafaela, o mar era visto, pelos europeus, como um espaço dominado por monstros e a acabar num abismo. Ai daqueles que se aventurassem nos limites desse abismo. Seriam impiedosamente tragados por ele. Todo o nosso povo foi herói nesse tempo. Os idos, tantos deles para não voltarem mais, e os que ficaram. Até os condenados às galés, parte maior das tripulações, foram heróis na escolha entre uma morte quase certa e a indignidade das grilhetas. Correram todos perigos sem conta. No mar e em terra. O pavor do desconhecido. A hostilidade de outros povos. O furor das tempestades. A fome a morder. A sede a enlouquecer. Os ambientes inóspitos. Os amigos a morrer ao lado. A recordação dos entes queridos que não se sabia se voltariam a ser vistos. E aqui, em Portugal, a paciência dos que ficavam. A recordação diária dos idos. A ausência de notícias. A paciente espera pelos barcos partidos, há tanto tempo parecia. Que grandes nós fomos! Em memória desses muitos que foram grandes, não temos hoje o direito de pensar e agir com pequenez. A luz da humanidade ficou mais clara com o sacrifício da nossa gente. Rasgámos em pedaços os mapas até aí desenhados. Trouxemos conosco amostras de outras civilizações até aí desconhecidas. Escrevemos as páginas mais difíceis do Renascimento, usando os nossos homens como pena e o seu sangue como tinta. Matámos os monstros a viverem no imaginário da Humanidade. Obrigámos o mar a curvar-se perante a nossa vontade. As ondas alterosas amainaram à passagem da nossa coragem. Não houve canto do mundo sem a visita dos Portugueses. E construímos um império à dimensão da nossa grandeza.

(continua)
Magalhães Pinto

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