Esfreguei os olhos, para ver se estava acordado. A cena desfazia uma série de pensamentos feitos que costumam habitar em nós. Ver tantos Contribuintes a barafustarem, a empurrarem-se, inclusivamente a tentar furar barreiras policiais, para pagarem os seus impostos em atraso que não os deixavam pagar, é o nosso habitual mundo às avessas. É a destruição de lugares comuns na área fiscal.
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Uma boa explicação é o nosso espírito latinamente “borlista”. Que nos faz encher o metropolitano do Porto quando se pode viajar de graça para, no dia seguinte, protestarmos contra o preço de passagens que até nem são caras se atendermos ao conforto e à rapidez do transporte. Que nos faz rejubilar quando é cometida a tremenda injustiça relativa de abolir portagens no nosso pequeno meio metro de autoestrada à custa de todos os outros, mas que nos faz interromper a circulação se as portagens são restabelecidas, interrompenso a injustiça. Que nos faz fazer greve se, como manda a equidade, continuarmos a pagar para a Caixa Nacional de Pensões as nossas contribuições quando passamos à reserva. Como se deixássemos de dispor de todos os serviços do Estado pelo facto de termos deixado de trabalhar. Um espírito “borlista” que nos faz acorrer em massa a tudo quanto cheire a “de graça”. Nesse sentido, até os que protestamos contra o perdão – os cumpridores – contribuimos para o sucesso da medida governamental, por termos empolado o que seria o benefício dos incumpridores. Se o bónus era tão injusto, como diziam os relativamente prejudicados, então seria de aproveitar, terão pensado os beneficiados. O que, a ser verdade, mostra uma consciência cívica e extremamente distorcida, que há que inverter. “Deixa-me aproveitar, porque se prejudica o meu contrário, beneficia-me a mim”, é um pensamento civicamente inadmissível.
Excertos da crónica MISTÉRIO - Magalhães Pinto - "VIDA ECONÓMICA" - 29/12/2002
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