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10.12.07

OS HERÓIS E O MEDO - 111º. fascículo

(continuação)

O navio começou a afastar-se lentamente, como se também ele sentisse dificuldade em separar-se de terra. O espaço entre o casco e terra foi-se alargando. O agitar dos lenços no cais era agora mais frenético. Parecia não haver mão que não segurasse um. As gaivotas do Tejo, por mágicas artes transformadas em singelos pedaços de pano, tinham-se deixado apanhar pela emoção daquela hora. E esvoaçavam, seguras por uma asa, nas mãos daquela gente, numa ânsia de liberdade. O Uíge começava agora a deslizar rio abaixo. A Torre de Belém surgia aos olhos de muitos pela primeira vez em tamanho natural. E a beleza retratada nos livros da quarta classe da primária assumia contornos de masmorra. Os lenços acenavam cada vez com mais força. Lá longe, cada vez mais longe, já só se descortinava a mancha branca desfraldada ao vento. Como se quisesse acentuar-lhes a cor, o Sol espreitou por entre as nuvens. Um pouco envergonhadamente. Talvez ele sentisse, também, que a hora era de choro. Nos olhos de grande parte dos homens bailavam lágrimas rebeldes, teimosas, recusando-se a rolar faces abaixo. Fixos, sem pestanejar, na mancha branca dos lenços. A qual era cada vez mais pequenina. Já parecia, agora, só um grande lenço a esvoaçar muito longe. Os Jerónimos perpassaram diante do navio, quase sem que alguém os notasse. Suavemente, o barco continuava a deslizar. Lisboa não existia. Os homens continuavam pregados às amuradas, olhar continuadamente fixo na mancha branca dos lenços. Era já quase só um ponto. O Bugio. E o mar. Os lenços tinham-se esfumado, substituídos agora pela espuma provocada pelo casco a romper uma suave ondulação. O navio rumou ao sul numa volta larga. Os homens começaram a acomodar-se. Os oficiais na primeira classe. Os sargentos na turística. Os soldados nos porões, numa camarata improvisada. O cheiro nos porões era quase insuportável. Cheiro de cargas diversas, onde avultava o de milhares de soldados transportados. Mas o inconveniente não era muito. Seria muito pior o calor, quando se aproximassem do trópico.

(continua)
Magalhães Pinto

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