OS HÁBITOS PERDIDOS
Por dever de ofício, tive de percorrer, nos últimos três meses, as actas de uma importante autarquia local relativas a todas as reuniões ocorridas entre 1950 e 1970. Portanto, daquilo a que se convencionou chamar “anos de fascismo”. Mais ou menos correspondentes ao período de governo local de um grande presidente de Câmara, que marcou, de modo indelével, o futuro da sua municipalidade. Colhi, naturalmente, muitas surpresas, Pude ver, ao microscópio, o modo de funcionamento da máquina administrativa naqueles anos. E não pude de deixar de, involuntariamente, comparar com o que se passa nos tempos actuais. Entre os factos que mais me impressionaram, está o conjundo de regras, o modo de operar a gestão, que permitia um controle dos gastos públicos até ao centavo. Foi uma surpresa e tanto. A liberdade de um presidente de Câmara para gastar um tostão a mais do que lhe fora autorizado era praticamente nula. Como era quase nula a sua capacidade para alterar a natureza dos gastos que haviam sido autorizados. De igual modo, os departamentos da autarquia eram submetidos a margens muito estreitas quanto à sua capacidade de extravasar os gastos autorizados através do orçamento. E estas regras funcionavam também não apenas para os montantes absolutos gastos como na natureza daquilo onde se gastava. Sair fora das regras tinha, geralmente, por consequência, a imediata realização de um inquérito. E não faltam referências a sanções para alguns gestores menos cuidadosos.
Dir-se-á que isto era inadmissível. Que deixava coarctados, limitados, amarrados, os gestores da coisa pública mais próximos da realidade. Talvez fosse. Talvez os “fiscais” sentados no Terreiro do Paço, ou os presidentes, sentados nos seus gabinetes, não soubessem o que se estava a passar na realidade. O que poderia dar lugar a situações no mínimo cómicas, para não lhes chamar dramáticas. Como, por exemplo, aquela vez em que um departamento do Estado, localizado em Lisboa, queria demolir uma construção sobre a praia, construção essa que hoje é considerada monumento nacional. Mas tais situações, quando existiam, geralmente não eram consumadas. Havia como que uma fiscalização das deicsões que funcionava nos dois sentidos. Só aconteciam verdadeiramente asneiras quando o poder mais central queria mesmo fazer as coisas, não obstante saber que era asneira, movido por influências que nada tinham de racional a não ser a ideia de proporcionar ganhos ilegítimos. Poder-se-á dizer, exacerbando os sentimentos democratas, que não está certo que não sejam aqueles que estão “no terreno” a decidir a aplicação do nosso dinheiro. Poder-se-á dizer que tal fiscalização se sobrepõe ilegitimamente à vontade do Povo, já que “o Povo é quem mais ordena”. Mas tudo isso serão frases balofas, de comício, que nada têm a ver com a realidade.
Aqueles hábitos de controlo da despesa pública eram, naturalmente autoritários. Hoje, diríamos excessivos. Imagine-se o que é um departamento de relações públicas da autarquia que quer adquirir uns copos para água, de modo a bem poder servir os seus visitantes, mas tem que pedir autorização à Câmara e essa autorização tem de ficar exarada em acta da Câmara para que fique bem evidente a quem pertence a responsabilidade de tal aquisição. Ou que, tendo necessidade a Câmara de mais um funcionário para um dado serviço e tal exceder a dotação do qaudro aprovado, ter de pedir autorização ao Ministério das Finanças e carecer de autorização escrita. Podemos dizer tudo isso. Mas, sabemos hoje, a consequência de tais hábitos. É que ficava perfeitamente evidente a responsabilidade do gasto. E, porque o resultado do pedido de autorização podia ser negado, tal tinha consequências de vulto. Primeiro, o autor do pedido ou proposta, como se lhe queira chamar, não queria correr o risco de ver a sua petição negada, por razões de prestígio interno, e buscava sempre outras soluções antes de pensar em fazer crescer os gastos; e, segundo, o gestor da coisa pública, estivesse situado em que degrau fosse da escada do poder, tinha a perfeita e permanente noção de que estava a administrar património que não era dele e, por isso, respeitava-o.
Hoje vemos o que “ganhámos” com as alterações verificadas ao nível da despesa pública. Um desequilíbrio brutal nas despesas relativamente às receitas e uma dívida astronómica que não sabemos quando a poderemos pagar. Haverá quem diga que esse é o preço da Democracia, que esse é um custo da Liberdade. Seja. Estou disponível para aceitar tal afirmação. Mas coloco uma questão seriamente aos meus Leitores: entre um português em Lisboa, ainda por cima honesto, a impor as regras, e um indiano qualquer, ao serviço de uma instituição internacional chamada FMI, instituição essa na qual mandam as grandes potências mundiais, a impor as mesmas regras, qual preferem?
Quer isto dizer que eu advogo o regresso da Ditadura? Longe de mim tal ideia. Amo a Liberdade como amo a luz dos meus olhos. É por ela, Liberdade, existir que eu estou para aqui a dizer isto, sem receio de ir preso. Não. A minha ideia é outra. É deixar expresso dois sentimentos que, na conjuntura actual, me supliciam em cada dia. Um, o de que não é necessário sacrificar a Liberdade para manter bons hábitos de administração. Outro, o de que, se não regressarmos a esses bons hábitos, o mais provável é que hajamos de perder a Liberdade. Isto se, nas condições que já atinjimos, tal Liberdade não está já realmente comprometida, ainda que formalmente pareça continuar a existir. Porque há algo que a História nos ensina, como tenho tido ocasião de ver numa revisita aos compêndias da nossa História que, também recentemente, tenho feito. É que, quando a maioria dos cidadãos pensar que vale mais um Português a mandar em nós, em Lisboa, do que o Mundo a mandar em nós, em Washington, ninguém tenha dúvidas de que esse português aparecerá. E esse, porventura, o maior custo que, se não arrepiarmos caminho, havemos de suportar pelo abandono dos bons hábitos, dos bons costumes, das boas regras, da limitação de gastar o que a cada um apraz, sem dar satisfações a ninguém e sem se lembrar de que há um país, que amamos, a deixar aos vindouros.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 7/4/2011
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